clave de fá

Recordação em clave de fá. Por Antonio Contente

…CLAVE DE FÁ… estava distraído a buscar, com olhos fixos nas paredes do quarto, ou nos desvãos do assoalho, caminhos para chegar a certas saudades. Gosto, pastor que delas sou, de as apascentar com meu cajado de nuvens…

Clave de Fá:

         Na verdade eu estava distraído a buscar, com olhos fixos nas paredes do quarto, ou nos desvãos do assoalho, caminhos para chegar a certas saudades. Gosto, pastor que delas sou, de as apascentar com meu cajado de nuvens e minha capa bordada com suspiros de estrelas. Mas, de repente, como que fui acordado por aquilo. Aprumo os ouvidos, que já não exibem a acuidade dos velhos tempos, e caio na realidade de que o que escutava era o estridente canto de um indesmentível bem-te-vi. Caio em espanto porque não ouvia isso, aqui no entorno do meu tugúrio, há muito tempo. Afinal tais passarinhos costumam abrir seus peitos em cantos após grandes chuvas, quando o céu lavado promete a volta do azul. Levanto, saio e vou até o quintal, coberto de sol. Olho para todos os lados, em busca do  cantador. Nem sinal dele. Necas de pitibiribas.

         Volto ao quarto para, logo depois, ter a certeza de que o canto que ouvira fora um sinal do imponderável para que eu lembrasse de Lars Bjonikeld. É que, passando então a mexer num monte de livros, puxo o “Meias Rendadas, Pernas Cruzadas”, da maravilhosa escritora Ana Maria Nagrão; todavia cai, a meus pés, um outro intitulado “Birds of the Could Countries” (“Pássaros dos Países Frios”). Escrito exatamente pelo cidadão de nome arrevesado que cito acima. E que conheci num longínquo tempo do século passado. O livro me foi dado por ele. Que era o autor.

         Na época eu tinha uma franciscana choupana na cidade balneária de Salinópolis, no litoral do Pará, e a ela me recolhi, certo ano, num mês de outubro, tempo de ventos maravilhosos e mar claro. Por não ser época de temporada a área estava vazia de turistas, entregue apenas às modorras sacrossantas dos nativos. E, já no primeiro começo de noite, fui, como fazia sempre em tais ocasiões, em busca da barraca do Ceará, pequena biboca de madeira erguida, como outras, à época, ao lado da praia do Maçarico. Ali se podia tomar uma cervejinha não muito gelada, compensada por boas peixadas cuja simplicidade no preparo às remetia às proximidades das maravilhas. Era uma segunda-feira e, ao saltar diante do local de bordo de um velho jipe, tomei baita susto ao escutar a música que estava sendo tocada no buteco. Cheguei, mesmo, a enfiar o indicador nos ouvidos para me certificar de que não fora tomado por alguma alucinação. Não fora, pois o que escutava era nada mais, nada menos, do que o “Concerto em Dó Maior”, de Vivaldi, pelo Conjunto I Musici. A gravação me tomou de forma tão particularmente íntima que reconheci o oboé de Heinz Hollinger e o fagote de Klaus Thunemann.

         Entrei e, com honesta perplexidade, perguntei ao dono da casa na qual normalmente só ecoavam baiões, sambas, duplas caipiras e xaxados, o que estava havendo.

         — Você está estranhando a música? – Ele apontou para a caixa de som do “Três em Um”.

         — Por tudo quanto é mais sagrado! – Ergui as sobrancelhas – Claro que sim! O que está acontecendo?

         — Sabe? – Ceará me puxou para dentro – É aquele homem.

         — Que homem?

         — Ali.

         — Bom – modulei a voz – estou vendo apenas a mesa vazia. Sobre ela uma garrafa de cerveja, um copo pela metade, um cachimbo e um livro.

         — Pois é, do homem.

         — Mas que homem? — Suspiro, com a curiosidade nos píncaros.

         — Ali – ele apontou para fora.

         Apurei a vista sobre a cena mal iluminada e vi, junto às pedras, as costas de um sujeito alto, forte, cabelos claros, olhando para o mar.

         — É o novo padre da paróquia? – Arrisquei.

         — Não, não é o padre. Não sei de quem se trata.

         — Ora – volto a suspirar – se não é o padre há de ser alguém. Marciano é que não é.

         — Faz mais de 10 dias que ele vem todas as noites para cá. Senta, come o nosso peixe, toma cerveja, lê e sempre pede, na base dos sinais, que coloque no meu som uma fita com essas músicas.

         Foi assim que pouco depois, apresentado pelo Ceará, conheci Lars Bjonikeld, o sueco. Era ornitólogo e pertencia à Real Sociedade Sueca de Ornitologia; estava no litoral do Pará fazendo trabalho obre os pássaros da região em geral mas, em particular, uma espécie de sabiá que viveria  nas árvores dos mangues desde a Ilha de Colares até as praias na divisa com o Maranhão. Dai em diante passamos a jantar juntos todas as noites, enquanto ele permaneceu na área, sempre a escutar variadas peças clássicas das fitas. Depois que o gringo partiu, na segunda noite o dono do boteco me perguntou, com a casa em bom movimento e um Chitãozinho e Xororó dando seu recado no Três em Um.

         — Sabe por que tava vindo pouca gente aqui, nesse horário?

         — Não faço a menor ideia – respondi.

         — Era apenas – finalizou – por causa das músicas horríveis, medonhas, que você e aquele simpático gringo pediam para tocar…

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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