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A polonesa. Por Antonio Contente

… Sem novas perguntas Alério de fato fez isso e, no outro dia, pelas 17 horas, estava diante do porteiro do prédio da polonesa. — Viajou – o homem informa. — Viajou? — Brasília, meu caro, todas as embaixadas estão indo para lá. Mas ela lhe deixou isso. Pegando o envelope, Alério sentiu que suas mãos tremiam…

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Mil novecentos e sessenta foi um ano e tanto para Alério. É que, após ter morado durante muito tempo em São Paulo, mudou para o Rio; à época ainda Cidade Maravilhosa. O problema é que deixou, na capital paulista, uma namorada pela qual era total e alucinadamente apaixonado. Tinha intenção de progredir no trabalho que arranjara nas terras cariocas a fim de, pra lá, recambiar a moça; devidamente casados.

Não se passaram nem dois meses que o rapaz mudara quando recebeu sucinto telegrama: “Venha urgente, preciso falar-lhe”.  Com a mensagem na mão, mesmo acossado pelas dificuldades dos telefonemas interurbanos nos 60, conseguiu ligar para a menina. Marcaram encontro no Parque Ibirapuera.

Viajou num velho avião da Ponte Aérea, movido a hélices, para chegar no horário. Porém, o que a mocinha precisava dizer ao apaixonado nem exigia pompa e circunstância. Ela, apenas, se apaixonara por outro. Devidamente cambaleante com a situação medonha, ele retornou ao Aeroporto de Congonhas e ao Rio. Só que o fez com intenção posta na cabeça: iria se matar, pois não conseguia imaginar a vida sem a linda criatura que lhe dera um pé na bunda.

Naquela mesma noite, para equacionar a própria morte, ele resolveu tomar cervejinha em Copacabana. E fez isso sentando num bar na entrada da Galeria Alaska, pelo lado da avenida Atlântica. Foi quando, de repente, viu, numa outra mesa, a mulher que jantava. Muito loura, muito bonita e bem mais velha do que ele, certamente o dobro, ou mais, da idade. Olharam-se e, como ela tomava vinho, ele, discretamente, levantou brinde. Houve resposta. Em mais alguns minutos ocupavam a mesma mesa.

Quando ele acordou, no dia seguinte, o sol entrava pela janela do apartamento que não era o seu. Sentiu o aroma, mistura de café coado e pão sendo torrado. Fazendo algum rumor ao levantar, ouviu a pergunta, vinda da copa:

— Quer ovos mexidos?

Mas foi ao sentar para comer, após o banho, que Alério percebeu, agora à luz do dia, o quanto a mulher era realmente linda na maturidade estonteante, íntegra; certamente rondando os 50 anos. E se, 24 horas antes o moço pretendia enfiar uma bala na cabeça acossado pela densa paixão que deixara em São Paulo, algo passou a lhe dizer que há certos gestos extremos que podem ser, digamos assim, adiados.

Wislawa, diplomata de carreira, trabalhava na Embaixada da Polônia que, como todas as representações estrangeiras aqui creditadas então, mudaria para Brasília, recém-inaugurada. Já juntos há quase um ano, porém cada um morando em seu próprio apartamento, um dia, a passear, de mãos dadas, pela praia de Ipanema, Alério perguntou à amante quando, afinal, ela iria para a chamada “nova capital”.

— Ora, não se preocupe; você saberá…

Assim foi que dias depois, pela manhã, o rapaz ligou para Wislawa avisando que passaria, à tarde, em sua casa, para apanhá-la.

— Não, hoje à tarde não – ela respondeu – venha amanhã.

Sem novas perguntas Alério de fato fez isso e, no outro dia, pelas 17 horas, estava diante do porteiro do prédio da polonesa.

— Viajou – o homem informa.

— Viajou?

— Brasília, meu caro, todas as embaixadas estão indo para lá. Mas ela lhe deixou isso.

Pegando o envelope, Alério sentiu que suas mãos tremiam. E, logo, saiu andando pelas ruas bem arborizadas da parte mais distante da orla, em Copacabana. Por fim, tomou um ônibus para Ipanema e, chegando em casa, sentou para sacar o que recebera. Ao fazer isso, porém, pintou um baita susto, pois a longa mensagem, escrita à máquina, estava no mais puro e indecifrável polonês. No fim do texto, porém, ele percebe que havia algo em português, um PS, em letras vermelhas. Que dizia assim: “Redigi esta na minha própria língua porque acho que você não deve ler o que tenho a lhe dizer agora, quando ainda está com somente 22 anos e eu com 50, acumulando a agravante de ter experimentado os horrores da Guerra, terminada nem faz tanto tempo. Ficarei pouco em Brasília, estou sendo transferida para a Finlândia. Um dia qualquer, quando ficar mais velho, arranje alguém para traduzir. Com você vivi os dias mais lindos, mais felizes da minha vida”.

De fato Alério guardou aquilo num fundo de mala, e o tempo passou. Quando carregava muitos anos nas costas, cabelos branquissimos, certo sábado, no bar que frequentava, apareceu um polonês. Teve, de repente, o insight e pediu a ele que esperasse, pois possuía documento que precisava ser traduzido. Correu à casa para pegar a carta no fundo do baú de alfarrábios; todavia, antes de tornar ao buteco, desdobrou o papel para rever a incompreensão do que continha. E foi ao reler o PS em português que parou na frase: “Com você vivi os dias mais lindos, mais felizes da minha vida”. Murmurando um “eu também”, Alério descobriu que nada necessitava ser traduzido. O polonês ficou esperando, só que nosso herói não voltou. Pois tudo a ser dito, sobre a linda história, já dito fora. E vivido. Sem nada a acrescentar.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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