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Cabelos ao vento. Por Antonio Contente

… Cabelos ao vento chamam para a brandura dos afagos impalpáveis. Na sua limitada infinitude recebem os sinais que lhe mandam as palmas dos coqueiros fincados na areia, e as ondas acariciantes das dunas que mudam seus vales com o bater das brisas, ornadas de aromas, nas entranhas das madrugadas densas…

Cabelos ao vento

E ali estava a moça, na manhã que do seu corpo brotara, com os cabelos soltos ao vento. Praia longa, de ondas breves e espumas de brancuras brandas; a se confundir com sussurros, falas do mar, segredos de horizontes, flutuar de sargaços em marés lançantes. Azul, no alto o azul de raras pétalas como que saídas dos voos dos pássaros da aurora. E nada a mim falava mais do que ver os cabelos, ao vento. Fios de negrume orlado para o semear de estrelas, e que, na madrugada do amor entrelaçado, me dera perfume, carícias, sonhos na eterna brevidade do que libera o supremo.

Cabelos ao vento chamam para a brandura dos afagos impalpáveis. Na sua limitada infinitude recebem os sinais que lhe mandam as palmas dos coqueiros fincados na areia, e as ondas acariciantes das dunas que mudam seus vales com o bater das brisas, ornadas de aromas, nas entranhas das madrugadas densas. De repente redescubro que o grande passeio, nesta praia imensa do litoral atlântico da Amazônia Profunda, no Pará, amplia seus limites no mudo cântico daqueles cabelos ao vento. De cada esvoaçar de mechas vão os recados que as gaivotas entendem, podendo então parar no espaço para tão somente olhar o dourado dos peixinhos; não como presas, mas incrustações prateadas das preciosidades que certamente escaparam dos grandes castelos que os peraus agasalham. Nos quais, se não habitam sereias, com certeza acolhem os últimos sonhos de esperanças de náufragos diante do inelutável.

Cabelos de uma linda mulher ao vento tiram dos seus esconderijos os toques do impossível. Achar apenas o possível, nesses instantes, é muito pouco; por tolher a certeza, que temos que ter, de que a qualquer hora, dos dias claros ou das noites, é possível contar com a possibilidade das estrelas. Cabelos ao vento são mapas para descobrir lagos de águas claras nas matas que começam onde as areias terminam. É sempre para chegar a eles que os pássaros, esses descobridores de horizontes entre os espaços de apenas dois galhos e uma forquilha, engolem as lapidadas lonjuras que os nossos incipientes olhares humanos jamais alcançam.

Volto à moça, e ela agora me estende as mãos a pedir que caminhemos sobre os restos de ondas.

— Venha – me diz – é nas espumas que está traçado o melhor caminho para nossos passos.

— Na busca do amanhã?

— Que só é bom quando ornado com as saudades do ontem.

E lá vamos nós com nova partitura aberta ás canções para as quais o sol não é clave apenas, mas orgia de luz que pede o apaziguamento de grandes tufos de nuvens brancas, muito brancas. Não há chamamento das belezas ornadas da paisagem que me tire a certeza de que tudo, ali, é tão somente moldura ao maravilhoso universo dos cabelos ao vento.  Os gestos da moça, afinal, regem o que a partitura mostra. E acompanhando cada alegro ou moderato cantábile, passos, na quase água, de maçaricos ágeis; adiante, pequeno subir de garças tão íntimas dos ventos; de repente dois guarás vermelhos que, saídos da alquimia do tempo preguiçoso no afago da manhã, contam que suas asas se nutrem com o alimento das distâncias.

Caminhar em praia deserta com moça que deixa os cabelos soltos ao vento é a tradução mais sábia do quanto é bom não ter destino. A borboleta de voo incerto sabe as voltas que dá para chegar à pétala certa, como sabe o colibri que a doçura fértil nunca foge da rota que as suas asas escrevem. Mas cabelos ao vento só conduzem à sapiência aqueles que têm na ponta dos dedos a gênese do instante deles mesmos.

De repente, como se acordasse, até me espanto com a voz da moça, a perguntar:

— O que, afinal, existe além daquelas pedras?

— É o Porto dos Pescadores, na Baía do Nunca.

— E não poderíamos pegar um barco que nos levasse à Ilha do Jamais?

— Sim, claro, pois é lá que desce a cascata da Cachoeira do Impossível.

De pé na proa do pequeno barco, agilíssimo a correr entre pequenas ondas coroadas de branco, os cabelos soltos ao vento agora eram a bússola aos pontos cardeais dos sentimentos primevos. Assim, naquela manhã, descemos na Ilha do Jamais onde, afinal, o cair da tarde nos pegou à sombra de um taperebazeiro florido de frutinhas amarelas, quase meigas pétalas. E hoje, passado tantas luas, chuvas e auroras da viagem inesperada, ninguém me pergunta quanto tempo fiquei ou quando voltei. Pois, na verdade, eu até posso estar aqui. Mas nunca, jamais, em tempo algum saí de lá; com aqueles cabelos ao vento a tocar o meu rosto feliz. Afinal, no despetalar dos calendários fico muito melhor ao conseguir dourar a eternidade daquilo que, mesmo findo, ainda é.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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