classe

Classe é classe. Por Antonio Contente

      classe Quando ela começou a me contar a história, confesso que senti certo arrepio. Afinal, ia se desenhando, aos poucos, uma narrativa de emoção e suspense. Os ingredientes, como se verá, não poderiam ser melhores. Ela, uma mulher de 40 anos — divorciada, linda, rica — em temporada de relax numa pousada de luxo em praia do Nordeste. Viajara sozinha, numa dessas escapadas para esfriar a cuca após tumultuado relacionamento com um amigo do ex-marido. Fora da temporada, a moça se instalou numa suíte, a melhor da hospedaria.

         — Só no segundo dia – ela passou a me dar detalhes – ao voltar da praia, é que percebi que estava sendo observada.

         E quem fazia isso? E quem, sobre ela, lançava olhares de tépida curiosidade? Ninguém mais, nem menos, do que o manobrista do estacionamento do hotel.

         — No instante em que percebi seu olhar sobre mim, senti um calafrio – ela acrescenta.

         Daí em diante minha amiga foi fornecendo outros pormenores. O sujeito, grandalhão, era perfeito sósia do falecido ator Charles Bronson. E interrompia o serviço de manobrista para, com olhares de fogo, percorrer as minúcias do belo corpo da hóspede sempre que ela vinha da praia envolta numa canga algo transparente a cobrir o exíguo, o mínimo fio-dental.

         — No segundo dia cheguei perto do pânico quando o sujeito se aproximou de mim; tive a impressão que, do canto da boca dele, escorria uma baba. Que identifiquei como sendo de desejo.

         — Puxa – ergo a voz – mas até isso? Até baba de lúbrico desejo?

         —Lúbrico desejo sim, e tem mais. Pois limpou a coisa que escorria com a costa da mão; enquanto com o olhar, em labaredas, me despia.

         Com medo, a hóspede começou a achar que deveria, no mínimo, falar com o gerente do hotel. Contudo, analisou: falar o que? Que o manobrista do estacionamento a olhava? Se pelo menos ele tivesse dito alguma coisa, lançado um gracejo, talvez justificasse a queixa.

         — Bom – ela prossegue – com três dias daquilo, achei que o mais razoável seria deixar o local. Pois os tórridos olhares do homem me deixavam gelada.

         — Claro – concordei – pois com baba de desejo escorrendo pelo canto da boca a barra pesava ainda mais, não é mesmo?

         Minha amiga resolveu, então, voltar para Campinas na mesma tarde. Porém, igualzinho como nos romances de mistério de Daphne Maurier, começou a chover. Primeiro, fraquinho. Depois, forte, temporal dos brabos. Com relâmpagos, vento, trovões, enfim, tudo a que um quase furacão tem direito. Com a noticia de que caíra uma barreira na estrada, ela adiou a viagem para o dia seguinte.

         O relógio marcava nove e meia da noite, e nossa personagem, na suíte que ocupava, acabara de assistir o noticiário da TV. Desliga o aparelho, pega o romance “Querida Cidade”, de Antonio Torres, e começa a ler. Não havia nem dobrado a segunda página quando escuta um estranho rumor. Primeiro pensou que fosse barulho da chuva na calha. Contudo, logo identificou o negócio como um suspiro, ou a respiração, ofegante, de algo vivo que estivesse por perto. Com o coração em descompasso, baixa o livro e senta na beira do colchão. O rumor da respiração não só se torna mais nítido como indica que alguém poderia estar dentro do armário.

         — Quem está aí?! – Ela brada, com a voz entrecortada pela emoção.

         A resposta acabou sendo a porta que se abriu para depositar na frente da horrorizada hóspede o Charles Bronson do estacionamento. Que começou a caminhar, lentamente, em direção a ela, nu da cintura pra cima, com o suor escorrendo sobre os rijos músculos, queimados de sol. Nesse ponto minha amiga interrompe a narração e me pergunta:

         — O que você acha? Que eu gritei com todas as forças que me seriam permitidas pelo ar que eu pudesse acumular nos pulmões?

         — Sim, claro – falo com firmeza – não vejo que outra alternativa para a situação terrível na qual você se viu envolvida.

         — Puxa – ela levanta, erguendo as sobrancelhas – Que juízo negativo você faz de mim. Então você acha que uma mulher fina, educada, de classe que nem eu ia botar a boca no mundo para acordar o hotel inteiro?

         Daí volta a sentar, sem mais nada dizer. Mesmo porque nada mais lhe foi perguntado.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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