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A volta à normalidade constitucional. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

Normalidade constitucional… a governança democrática exige uma interlocução entre os Poderes. Este, o seu aspecto dinâmico que também é articulado pela Constituição. É ele a supremacia do direito expresso pela lei…

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A última década da vida brasileira foi, sem dúvida, marcada por problemas graves. Houve uma pandemia, houve ameaças às instituições democráticas. Hoje, porém, não mais existe a pandemia nem ameaças às instituições democráticas.

Este é o presente.

Ora, não se vive no passado, mas no presente. Assim, é preciso viver na normalidade. Entretanto, não se vive a normalidade constitucional. Falta a restauração do império da Constituição, que se pôs de lado no período de anormalidade. É isto imprescindível para que se viva a plenitude da democracia.

A Constituição parte da afirmação do Estado democrático de Direito (art. 1º, caput). Ora, a democracia contemporânea importa numa simbiose de elementos que é definida pela Constituição. Ela não se limita a eleições livres para os Poderes políticos. Na verdade, ela incorpora outros princípios essenciais.  Um deles é a divisão do Poder, que se faz pela distinção de um Poder que legisle, um Poder que administre e um Poder que julgue, cada um com sua própria competência. É a separação dos poderes. Esta é o aspecto estático da organização política que a Lei Magna brasileira considera até cláusula pétrea (art. 60, § 4º, III).

Contudo, a governança democrática exige uma interlocução entre os Poderes. Este, o seu aspecto dinâmico que também é articulado pela Constituição. É ele a supremacia do direito expresso pela lei, pois, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Este princípio de legalidade é a pauta da governança, como garante da liberdade e rejeição absoluta do arbítrio seja de qualquer dos três Poderes. E da democracia, porque em outros termos, o sistema de governo democrático exige a definição de seus órgãos – os Poderes – em consonância com princípios como a divisão do poder, contudo para que funcione a contento reclama normas que ensejem a colaboração entre esses Poderes.

Numa simplificação do modelo clássico, ela organiza os órgãos governamentais – digamos Legislativo, Executivo, Judiciário – e lhes reserva determinadas funções, mas estipulando-lhes procedimentos e limites. E a eles impõem uma ação coordenada em vista da garantia do interesse geral e dos direitos fundamentais do ser humano, por meio de um governo de leis e não de homens – o estado de direito.

A observância da Constituição, destarte, é um elemento imprescindível para a democracia moderna, porque ela é condição de uma governança em que realmente o povo seja a origem do Poder – “todo poder emana do povo”, mas de um Poder limitado para que não abuse de sua força em detrimento da liberdade e da igualdade e atue a fim de propiciar o bem comum.

De tudo isto, decorre que a defesa da Constituição coincide com a defesa da democracia moderna. Para tanto, a democracia constitucional se preocupa em regular a sua própria defesa – mesmo em situações anormais, conforme está na Constituição brasileira no seu “Título V – Da defesa do Estado e das instituições democráticas.”

Assim sendo, a Constituição é elemento básico da democracia moderna. Com a implicação jurídica, de que ela é a lei suprema, pauta de toda a ação governamental, concretizada por meio de leis iguais para todos. E com a implicação política de que as normas da Constituição devem ter origem em um poder constituinte que pertence exclusivamente ao povo, seja para alterá-la, seja para complementá-la. Donde a implicação óbvia de que os poderes constituídos devem atuar de acordo com os procedimentos que ela prevê e – sublinhe-se – dentro dos limites que ela traça.

Nada de novo está no que se expôs.

Admitir o contrário importa, por exemplo, em aceitar o absurdo de que qualquer dos poderes constituídos possa alterar a Constituição, substituindo-se ao poder constituinte de revisão que ela prevê e regula. E para isso ela prevê até um “guardião da Constituição” que mantenha todos os três Poderes nos limites que traça.

Ora, a defesa da democracia esqueceu a defesa da Constituição, se fez não raro à revelia da Constituição. Por isso, torna-se necessária a volta à normalidade, ou seja, ao império da Constituição. Do contrário, a porta ficará aberta para o arbítrio e a democracia perecerá em face de uma autocracia, ainda que seja esta movida por boas intenções, como o aponta a sabedoria popular.

Com efeito, o uso de meios antidemocráticos, se aparentemente servem para a defesa da democracia, na verdade contribuem para desmoralizá-la perante o povo. Não se justificam por um estado de necessidade, nem com a invocação de uma democracia militante à moda de Loewenstein. Em ambos os casos, tornam-se o caldo de cultura que favorece as autocracias.

A volta à normalidade constitucional, ou seja, a volta a observância das competências e limites que a Lei Magna estabelece é imperativo evidente. Numa época de normalidade, não há razão para manter atos e processos extraordinários que a Constituição não prevê. Os que ela prevê são suficientes para defender a ordem constitucional democrática, complementados que são pela lei penal e processual vigentes, punindo os que a violem, ou violaram, para a defesa do Estado democrático de Direito, sem o contradizerem.

Tal volta é bem simples. Observe-se a separação dos Poderes. Basta, portanto, que o Executivo administre, o Legislativo legisle e o Judiciário se limite ao controle da compatibilidade dos atos com a Constituição e não vá além. Siga o disposto no art. 97 desta; “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais, declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Assim como não edite “leis” como lhe proíbe o art. 103, § 2º da Constituição.

Um bom começo desta normalização é a revogação dos atos que deram poderes extraordinários (e inconstitucionais) para que, no STF, um Ministro possa tudo, inclusive estabelecer censura, prender e julgar acusados que não estão na sua alçada, assim como editar leis, o que lhe proíbe o art. 103, § 2º da Constituição.

Não há mais pandemia nem ameaças à democracia, nem à posse de Presidente eleito, nem ao Supremo Tribunal Federal. Cabe a volta à normalidade constitucional que é a normalidade da democracia – a da Constituição-cidadã.

Este regresso que, na verdade, é um progresso servirá, inclusive, para apagar o radicalismo que tomou conta do país, servindo para eliminar suspeitas e partidarismos.

Remoer o passado, mantê-lo em tela, não enseja o progresso, nem serve ao interesse econômico e social do povo brasileiro. Nem permite que se olhe para o futuro e se aprimorem as instituições, o que somente ocorre pelo consenso.

Assim, a demora em voltar à ordem constitucional desserve à própria democracia, pois impede que a vida do País se desenrole democraticamente.

São Paulo, 4 de março de 2024.

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho –  Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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