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Que tamanho terá esse monstro amanhã? Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão

QUE TAMANHO TERÁ ESSE MONSTRO AMANHÃ? PENSANDO O FUTURO.

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“Davam duas horas para suspender uma conta, ou teríamos multas pesadas”. Antes do surgimento das tecnologias digitais, podia-se falar livremente, em qualquer lugar, sobre pessoas e coisas. As palavras desapareciam no ar. Hoje, entretanto, não é bem assim. Os olhos e ouvidos das redes sociais registram tudo. As intenções são detectadas, decodificadas ou reproduzidas rapidamente por cidadãos conectados pela tecnologia digital. Eles superam, no mundo, a casa dos 5 bilhões de pessoas. No Brasil são mais de 100 milhões. Nesse universo, os discursos não só ganham sentidos, como instigam ações. O filósofo francês Michel Foucault, não propriamente um usuário da internet, advertia: palavras são símbolos vivos, geram ação e criam realidades.

A consideração é elucidativa para essa contenda entre Elon Musk, proprietário do Twitter (X), e Alexandre de Moraes, um ministro do Supremo Tribunal, do Brasil. O embate entre os dois reverbera ideias expandidas digitalmente na consciência dos cidadãos. Vêm da livre circulação das palavras e das armadilhas discursivas que nelas se escondem. Pela dimensão que alcançam, o que está no submundo da etimologia não fica ignorado das redes digitais, sobretudo os enunciados absurdos.

A burrice não é tão generalizada como se quer acreditar. A reação ampla e imediata nas redes chega a assustar os emissores empoderados da esfera do Estado. Fragilizados diante do cidadão digital, não conseguem se esquivar da tentação de cercear a liberdade de informar e de pensar. O alargamento das reverberações contestatórias nas redes sociais, chegam a desqualificar sujeitos, autoridades e ideias tidas como impróprias ou “fakes”.

No campo da política, há no mundo uma disputa hegemônica para apropriação das novas tecnologias que alargaram competências e a compreensão do cidadão comum. Vista como virtude, ao mesmo tempo constituiria uma ameaça. Os militares brasileiros chegaram a recusar a entrada da internet no Brasil, hoje controlada na China – nosso pretenso modelo político -, na Rússia, em Cuba e países com perfil similar. Criaram uma secretaria de tecnologia vinculada à Presidência da República para gerar e administrar uma política tecnológica exclusivamente nacional, até então algo rudimentar.

Digitalmente, o Brasil parara no tempo. Não havia por aqui massa crítica capaz de erigir aqueles propósitos de cunho nacionalista. Nesse ínterim, as novas tecnologias expandiram-se, e o uso da internet evoluiu num ambíguo confronto entre o controle e a proibição, dentro do escopo da liberdade de pensamento e de informação. As pesquisas e tecnologias fortaleceram a tal ponto a sociedade civil, que ela terminou por derrubar governos, como aconteceu nos países árabes do norte da África.

Nosso atual destemido Presidente da República e sua “entourage” parece deglutir a questão, como um Macunaíma, ao pretender retomar essa linha autoritária. “O país não precisa da inteligência artificial”, porque é suficientemente inteligente para dar resposta ao que necessita. Anunciou que irá assinar nos próximos dias um ato de regulação da IA no Brasil, e que o governo já cogita de algo digital próprio.

Tudo bem, mas certamente um conteúdo com essa origem pode significar o controle da informação. Para começar, o Presidente vê no Brasil apenas dois polos políticos: “Esquerda e Direita”, que chamou de “Nós e Eles”. Os substratos aderem naturalmente. Difícil acreditar que isso seja fruto de confusões mentais discursivas ou de insuficiência intelectual. O “Nós e Eles” não é uma declaração apenas intempestiva, surgida no calor da hora. Nela brota o futuro de um governo centralizado perene, um partido único proletarizado, conforme explicou José Dirceu.

O problema é como essa futurologia vai se materializar? A democracia nunca conseguirá construir um regime desses no Brasil. O “Nós e Eles” é uma espécie de mantra que alimenta, infelizmente, um ódio, uma linha demarcatória das diferenças entre as pessoas na sociedade voltadas para o bem ou para o mal. Uma mensagem dessas ignora a história, e não se preocupa com as consequências.

É complicado explicar o ódio gerado por uma aparente e ingênua declaração, que induz a um distanciamento entre as pessoas de uma comunidade, produzindo facções de amigos e inimigos. O ódio, como método, é o sentido oculto no enunciado, contido até em desleixadas declarações sobre a busca pela paz e a democracia. A introdução dessa diferença social exige um emissor com coragem e desfaçatez para mentir e agir. Instalado carismaticamente tende a se perpetuar, como o peronismo, na Argentina; o maoísmo, na China; ou o stalinismo, na Rússia. São realidades, segundo Foucault, criadas pela palavra. Caminha-se, portanto, em direção a uma nova ética na gestão pública.

Nem Nietsche suportaria tanta ousadia. Todos os que mentem estão conscientes de que o fazem. São perfis recorrentes. Insistem em fazê-lo também por dois motivos: um patológico e o outro, porque, nas suas fantasias existenciais, vem nesse caminho uma forma de se estabelecer no cenário. A mentira e o ódio juntos trazem também em sua própria configuração matrizes do contraditório, identificadas e exploradas pelas redes sociais. Na verdade, é tudo grosseiramente óbvio nesse politicamente correto.

Se o ódio e a mentira, simbolizados nas palavras, desmascaradas nas redes digitais, não são suficientes para sepultar narrativas, resta a censura que surge na cabeça de ineptos governantes. E é assim que a Nação assiste estupefata, essa discussão entre um ministro do STF e o dono de uma plataforma digital, sentenciada a apagar opiniões de políticos e jornalistas. Musk expande seus negócios explorando a liberdade de informação. O cidadão ministro à busca de legitimidade para suas belicosas atitudes anticonstitucionais. São verdadeiras monstruosidades em curso. A persistirem, resta a pergunta: de que tamanho será esse monstro amanhã?

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Aylê-Salassié F. Quintão –  Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018

Autor, entre outros, de Lanternas Flutuantes:
Português –   LANTERNA FLUTUANTES, habitando poeticamente o mundo
Alemão – Schwimmende-laternen-1508  (Ominia Scriptum, Alemanha)
Inglês – Floating Lanterns  
Polonês – Pływające latarnie  – poetycko zamieszkiwać świat  
novo livro de Aylê-Salassiê: TERRITÓRIO LIVRE!

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