“Somos o lado certo da vida errada”. Por Aylê-Salassié F. Quintão*

Somos o lado certo da vida errada”

Aylê-Salassié F. Quintão*

A estratégia federal de redistribuição das lideranças das facções em conflitos, detidas, para unidades carcerárias estaduais contribuiu para criar uma rede de criminalidade pelo País, facilitando acordos de apoio mútuo, desde que respeitadas as hegemonias regionais…

             “Se as cabeças não forem encontradas, as famílias vão receber os corpos assim mesmo”, informou o diretor-geral do Instituto de Perícia (Itep), Marcos Brandão, sugerindo que no caso de  só as cabeças serem descobertas,  serão da mesma forma entregues às famílias.  Degolados, mutilados  ou incinerados, cadáveres em decomposição e até partes de esqueletos antigos estão sendo retirados das 40 fossas, de 18 m3, construídas dentro presídio de Alcaçuz   para absorver  os esgotos, fezes e todo tipo de  imundice produzida pelos detentos. Na primeira operação limpeza depois do massacre, 15 corpos foram resgatados sem cabeça e duas cabeças sem corpo. Até o meio da semana restariam ainda 11 cabeças desaparecidas. Um teatro de horror!

            “Océis são da grobo com acesso à polícia, ou são da polícia com acesso a imprensa?”, ironizou o colega. Chafurdando na internet descobri  e acabo de ler o Relatório de um inquérito  da Polícia Federal, de 2014/15, com 686 páginas,  sobre a facção criminosa Família do Norte, que possui um contingente de “soldados”, devidamente cadastrados, com mais de 200 mil militantes,  distribuídos pelos estados do Norte e agindo dentro e fora das cadeias federais, estaduais e municipais.

              Em  seis meses de investigações foram interceptadas 1,1 milhão de mensagens telefônicas com informações explícitas de que a FDN preparava o assassinato em massa  de membros do Comando Vermelho detidos em penitenciárias regionais. Detectaram-se crimes como tráfico de drogas da Colômbia e do Peru para o Brasil (Rotas Solimões e Tabatinga), de armas, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, homicídios, sequestros, torturas e corrupção de autoridades públicas.

Foram realizadas 11 grandes apreensões de drogas , a prisão de 27 membros e associados à organização criminosa ORCRIM, e a apreensão de 2,2 TONELADAS de drogas, avaliadas em 18 milhões de reais, além de submetralhadoras, granadas explosivas e dinheiro em espécie. Um dos principais chefes da facção criminosa admite o assassinato pela FDN de mais de 250 pessoas só em Manaus, tendo contribuído diretamente para a eleição de vereadores em vários municípios.

Encaminhado ao Juiz Federal da Região Norte e ao Ministério Público Federal o Relatório tramitou com uma certa lerdeza, talvez por alguma conveniência política (eleições) ou econômica (limitação de investimentos).

                 A estratégia federal de redistribuição das lideranças das facções em conflitos, detidas, para unidades carcerárias estaduais contribuiu para criar uma rede de criminalidade pelo País, facilitando acordos de apoio mútuo, desde que respeitadas as hegemonias regionais. Juntas, somam, contudo, um contingente de “soldados” maior que o  das forças armadas brasileiras. Faz lembrar o recado do cangaceiro  Lampião para o general Juarez Távora,  nomeado interlocutor de Getúlio no Nordeste: “O sr. pode mandá da metade do Nordeste prá lá. Do sertão eu cuido”. Chegou a ser apelidado de “O rei do Sertão”.

                 “ É uma guerra de facções!”, justificou aparentemente aliviado o ministro da Justiça, Alexandre Moraes. Criminosos comuns rivais disputando em todo o País o controle das penitenciárias e de áreas enormes fora delas, onde querem gozar a liberdade de distribuir e consumir drogas. Cada facção defende o controle de uma região. A Família do Norte controla o Amazonas e áreas periféricas, inclusive o Rio Grande do Norte, onde compete com o Sindicato do Crime.

O espaço ocupado pelas organizações criminosas, muitas vezes com configuração de OnG, é  um outro mundo: um Brasil paralelo, com governo, estatuto, juramentos, direitos, deveres, e perigosas extensões regionais…

              “Samos o lado certo da vida errada”, diz com convicção JOÃO BRANCO, há 31 anos no crime. Destaca que a FDN é hoje a terceira maior facção criminosa do Brasil, atrás somente do Comando Vermelho(RJ) e do Primeiro Comando da Capital(SP), sendo respeitada no mundo do crime.

 Trechos selecionados da sua fala mostraram a audácia de suas ações :

  “Aqui nos Samos o Crime, mano . As Rua, os bairro sao tudo Mapiado pela FDN. Tds os interior. Tem 200 mil homens tudo cadastrado com suas Senhas . Um laptop e um aparelho blackberry, com “programa  só nosso”, registram membros,  enviam ordens e recebem mensagens.  

“Tem uma caixinha com a entrada de R$ 500 mil por mês. Tem q tê 1milhao mês”. “Há uma conta centralizada num grande banco, em nome de um laranja, com CPF, identidade e endereço.”

                  Num chamado “Salve Geral” (comunicação interna), o líder explica que  :

              – Este dinheiro é prá pagar advogado, comprar armas, ajudar membros das famía dos presos, amenizar as duras condições de vida no sistema, e reforçar a autoridade das lideranças da FDN junto a massa presidiária.

Nomes de diretores, de carcereiros, policiais, advogados e até de juízes em exercício  são citados no Relatório.

            O espaço ocupado pelas organizações criminosas, muitas vezes com configuração de OnG, é  um outro mundo: um Brasil paralelo, com governo, estatuto, juramentos, direitos, deveres, e perigosas extensões regionais. Assim, sob um teto de terror e soluções  confusas para a segurança da pública, a onda de violência pode ser  esquecida rapidamente a partir do momento em que o Congresso e o Judiciário reiniciarem suas atividades. Bauman chamou  isso de “abismo desumano” da modernidade, representado no “despedaçamento das responsabilidades” que afasta o homem das consequências das suas ações.

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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural

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