Mãos invisíveis. Por Aylê-Salassié F. Quintão*

MÃOS INVISÍVEIS

Aylê-Salassié F. Quintão*

 … Se Adam Smith vivesse ainda hoje, ele iria se assustar. O que ele chamou de “a mão invisível do mercado”, regulada pela oferta e pela demanda, tornou-se uma nebulosa teia de protagonismos escusos, que inviabilizam qualquer política pública…

        Não tem governo, não tem partido, não tem esquerda nem direita. As grandes corporações empresariais fazem o que querem. É quase impossível governar sem elas em qualquer lugar no mundo. No Brasil, metade das quinhentas grandes empresas beneficiadas com favores fiscais, no governo anterior, para o fortalecimento das cadeias produtivas, não cumpriu os compromissos assumidos no acordo das contrapartidas, e ainda quer preservar os subsídios, da ordem de R$ 52 bilhões, tentando renegociação direta no Congresso.

 Se Adam Smith vivesse ainda hoje, ele iria se assustar. O que ele chamou de “a mão invisível do mercado”, regulada pela oferta e pela demanda, tornou-se uma nebulosa teia de protagonismos escusos, que inviabilizam qualquer política pública. Coube ao liberalismo, com sua proposta básica da “livre iniciativa”, abrir as portas para milhares de aventureiros e empreendedores potenciais, com a promessa de ganhos ilimitados no exercício das capacidades individuais.

 Convivendo com a pobreza de ideias e de iniciativas objetivas, admitiu-se no Planalto, que o País “precisava ter as próprias multinacionais”. Capital escasso e coragem de sobra – surgiu desse meio os jovens irmãos da JBS, buscando astutamente suporte no espaço da política.

 A livre iniciativa fez aflorar instintos predatórios à busca de vantagens competitivas. Contudo, trazia embutida a possibilidade também de perdas, o que terminou por induzir à introdução de novas teorias, leis e métodos de autopreservação. O liberalismo deu asas ao capitalismo selvagem, no qual empreendedores brasileiros também embarcaram.

 A partir do século XX, buscando fórmulas de escapar dos impostos, a globalização intensificou os fluxos de mercadorias, de pessoas, de informações e de capitais, atravessando governos. Cidades e países específicos tornaram-se centros de convergência de interesses apátridas no mundo e da dispersão comercial e financeira. Eram as metrópoles globais, Londres capitaneava o processo, alegando tratar-se de um mal necessário.

 Convivendo com a pobreza de ideias e de iniciativas objetivas, admitiu-se no Planalto, que o País “precisava ter as próprias multinacionais”. Capital escasso e coragem de sobra – surgiu desse meio os jovens irmãos da JBS, buscando astutamente suporte no espaço da política. Mediante propostas indecorosas, não rejeitadas, receberam isenções fiscais e até apoio financeiro do Estado, com o qual compraram os concorrentes. Instalaram-se, na Holanda – próxima a Luxemburgo, tido como centro mundial da lavagem de dinheiro – na expectativa de conseguir blindagem legal e institucional.

  Soluções desse gênero são emblemáticas. Haja vista os prejuízos com o programa de subsídios às cadeias produtivas das indústrias brasileiras. Em 1987/88, o gaúcho petista Olívio Dutra, candidato ao governo do Rio Grane do Sul, fez campanha acusando o PMDB, na chefia do Estado, de financiar uma empresa estrangeira com dinheiro público. O gancho retórico contra o imperialismo era bom. A Ford internacional estava propondo implantar um grande projeto, em Guaíba, e a partir dali ocupar o mercado da América do Sul. A campanha foi memorável. Olívio ganhou. Uma de suas primeiras iniciativas foi suspender os privilégios à multinacional em território gaúcho.

 No entusiasmo daquelas ovações e palmas ainda ecoando pelo plenário, o senador Antonio Carlos Magalhães (PDS-Ba) levantou-se, pediu a palavra, subiu à tribuna, e proclamou: “Se o Rio Grande do Sul não quer a Ford, a Bahia quer”. A Bahia estava de portas abertas para a empresa instalar-se por lá, anunciou. Foi um Deus nos acuda.

 A empresa propunha-se a produzir automóveis, caminhões e outros utilitários para exportação, investimento que consumiria mais de R$ 1 bilhão. Impregnado pelo próprio discurso e os louros da vitória nas urnas, o governador eleito do PT não recuou dos compromissos assumidos em campanha. A Ford tentou dialogar. Já haviam sido consumidos, em isenções fiscais e investimentos, recursos de quase meio bilhão.

Impossível. Era uma oportunidade de autoafirmação política contra um inimigo global. O assunto foi parar no Congresso Nacional. No Senado, a bancada da esquerda levantou-se para aplaudir o posicionamento firme de Dutra contra a multinacional, “ponta de lança do capitalismo selvagem”, denunciavam.

 No entusiasmo daquelas ovações e palmas ainda ecoando pelo plenário, o senador Antonio Carlos Magalhães (PDS-Ba) levantou-se, pediu a palavra, subiu à tribuna, e proclamou: “Se o Rio Grande do Sul não quer a Ford, a Bahia quer”. A Bahia estava de portas abertas para a empresa instalar-se por lá, anunciou. Foi um Deus nos acuda. A Bahia oferecia à Ford as mesmas condições. Em menos de meia hora, os aplausos a Olívio Dutra arrefeceram. Um mês depois a Ford iniciava a implantação na Bahia da sua unidade produtiva e, com ela, a promessa de criação de 100 mil empregos diretos e indiretos.

Empurrado por uma “mão invisível” a Ford transformou uma região paupérrima em uma das áreas mais desenvolvidas do Nordeste . Na esteira do empreendimento surgiu um Centro de Desenvolvimento da Bahia, um Complexo Industrial envolvendo a produção de 250 mil veículos por ano e um conjunto de fabricantes de autopeças e periféricos, um porto em Candeias e as cidades do entorno todas tiveram um upgrade das suas condições urbanas. Os carros baianos da Ford começaram a rodar pela América Latina. As exportações de automóveis pela unidade de Camaçari já alcançam mais de 20 países.

A Ford atropelou esquerda e direita. O Rio Grande do Sul engoliu seco, contentando-se em abrigar apenas algumas revendedoras da Ford. Mais tarde em condições similares terminou por receber uma unidade da GM, em Gravataí, que no início deste ano demitiu 300 operários.

Não nos iludamos: não foi por um intempestivo impulso de espontaneidade que Marcelo Odebrecht declarou que sua empresa era o próprio Estado, e que os irmãos da JBS informaram que financiaram 1800 políticos, elegendo prefeitos, deputados, senadores, governadores e quatro presidentes da República.

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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural

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