Guardanapos e bolinhos com o Papão das Arábias. Por Josué Machado

GUARDANAPOS E BOLINHOS COM O PAPÃO DAS ARÁBIAS

Por Josué Machado

Alguns podem alegar que ao trocar repórter por reportagem o escriba se valeu de uma metonímia, figura de linguagem baseada no uso de um nome no lugar de outro com que se relaciona…

O repórter brasileiro, enviado especial a Nablus, Cisjordânia, entrevistou o homem mais rico da Palestina. Descreve, então, um aspecto do encontro com o empresário imperativo:

“Munib AL-Masry não deixa a reportagem pegar um segundo guardanapo em cima da mesa, durante a entrevista. ‘Use o mesmo.’ Depois, insiste em oferecer os bolinhos feitos em seu palácio.”

Mais à frente:

“Ele responde às perguntas com dois celulares na mão, e se irrita quando a reportagem hesita em interrompê-lo. ‘Vai falando comigo enquanto estou no telefone.’

Primeiro, por que “…pegar um segundo guardanapo…” em vez de “pegar o segundo guardanapo” ou simplesmente “pegar outro guardanapo”? O artigo indefinido “um” é dispensável quase sempre.

Em segundo lugar, conviria que o repórter, para ser mais preciso, escrevesse que o entrevistado estava “ao” telefone e não “no” telefone; “no” em geral indica “sobre”, “em cima de” e noções paralelas.

O mais importante, porém, é que nos dois trechos transcritos o repórter refere-se a si mesmo como “reportagem”:

“… não deixa a reportagem pegar …”; “… quando a reportagem hesita…”

Por que será que não usou a palavra “repórter”, que o define e classifica, e, sim, “reportagem”, como se fosse uma gloriosa entidade?

Repórter é palavra de origem inglesa que significa “encarregado de realizar reportagem”.

E reportagem? Palavra de origem francesa (reportage), como lembra o Aurélio:

Reportagem: “1. Jorn. Atividade jornalística que geralmente compreende a cobertura de um acontecimento, a análise e a preparação do texto final a ser entregue à redação. [Diversamente da notícia (q. v.), a reportagem pretende esgotar o acontecimento, suas causas e consequências, e estimular debate sobre o mesmo.]
2. Jorn. O texto publicado resultante de reportagem.
3. O conjunto dos repórteres.”

 Reportagem, portanto, refere-se ao trabalho do repórter, ao produto de sua apuração, e não ao indivíduo. Também significa “conjunto dos repórteres”, mas não um só cidadão. Por isso soa estranho o repórter classificar a si mesmo de “reportagem”, como se lê às vezes em jornais e revistas. E também se ouve ou vê em noticiários de rádio e TV. Em outro texto de jornal, o repórter diz que o entrevistado “apertou a mão da reportagem” Coisa extraordinária apertar a mão de uma entidade!

Qual a explicação para isso? Ataque de modéstia do repórter, por considerar que ao chamar a si mesmo de repórter estará personalizando indevidamente sua obra e isso não fica bem? Ou o oposto?

Convém lembrar, aliás, que o texto do enviado à Cisjordânia não é na verdade reportagem, mas o registro de uma conversa; portanto, apenas uma entrevista.

Alguns podem alegar que ao trocar repórter por reportagem o escriba se valeu de uma metonímia, figura de linguagem baseada no uso de um nome no lugar de outro com que se relaciona.

Um repressor mal-humorado talvez dissesse ser preciso lembrar que o jornalismo exige linguagem exata, precisa, e o caso da troca indevida não passa de inadequação, falta de domínio vocabular.

Melhor pensar que houve apenas distração ou timidez da reportagem, epa!, do repórter e do editor, animal em extinção, para empobrecimento do jornalismo.

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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade

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