Estamos fritos. Por Cora Rónai

Estamos fritos

Por Cora Rónai

Um dia, uma lei idiota e aparentemente inofensiva; no outro, um episódio de censura; no terceiro, pessoas apedrejadas

- PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO, EDIÇÃO DE 21 DE SETEMBRO DE 2017 - 
Houve um tempo em que o Egito era um país quase ocidental em relação aos costumes. Bebida era servida livremente em todos os lugares, e não se via uma única mulher de véu pela rua. Niqabs, hijabs e burcas eram coisa do passado, de um tempo em que elas viviam escondidas nos haréns e não tinham qualquer participação na vida social e política do país. Fotos dos anos 50 e 60 mostram essa sociedade laica misturando-se aos turistas, bebendo nos cafés, divertindo-se em público; romances da época falam de uma cidade do Cairo efervescente e cosmopolita.
No Egito que visitei há uns três ou quatro anos, as únicas mulheres sem véu eram turistas, e a venda de álcool só era permitida — pelo menos oficialmente — em hotéis e alguns restaurantes. Na Biblioteca de Alexandria, cuja nova encarnação é, sem dúvida, uma das maravilhas do mundo, vasto templo de sabedoria com obras do mundo inteiro, é comum encontrar estudantes cobertas dos pés à cabeça, usando luvas pretas até nas mãos com que viram as páginas dos livros e manipulam o mouse dos computadores.
Hoje é tão difícil imaginar o Egito laico de 50 anos atrás quanto é difícil imaginar o Egito dos faraós. Os dois parecem irremediavelmente perdidos no tempo. Como explicar que, em menos de 50 anos, um país tenha mudado tanto?
Tenho a impressão de que lá aconteceu o mesmo que começa a acontecer no Brasil. Um dia, uma lei idiota e aparentemente inofensiva; no outro, um pequeno episódio de censura; no terceiro, pessoas apedrejadas porque estão sem véu. Religiosos defendem as suas crenças enviesadas, conservadores apoiam porque o mundo está perdido e antigamente era melhor — o mundo está sempre perdido para eles, antigamente era sempre melhor. A sociedade liberal reage um pouco, algumas vozes se erguem aqui e acolá, mas para que brigar por causa de um pedaço de papel ou de pano?
Quando a gente acorda, está andando de burca na rua.
Aqui tivemos, em rápida sucessão, o encerramento de uma exposição, a apreensão de quadros pela polícia a mando de deputados, a censura de uma peça por ferir suscetibilidades.
“Ah, a direita hidrófoba!”
Não seja por isso.
Já tivemos, e não faz muito tempo, uma outra peça, retirada de cartaz por ferir outras suscetibilidades. Já tivemos uma moça linchada na internet por usar turbante. Já tivemos uma blogueira impedida de falar por militantes que por pouco não a atacaram fisicamente.
Estamos involuindo à velocidade da luz. Há estupidez para todos os gostos, em todos os quadrantes. Só na última semana, traficantes evangélicos invadiram terreiros, apontaram armas para mães e pais de santo e ordenaram que quebrassem tudo; um juiz federal concedeu uma liminar permitindo a realização de terapias de reorientação sexual; e uma comissão da Câmara dos Deputados se propôs a mudar a Constituição e proibir todos os tipos de aborto, inclusive em casos de estupro ou de fetos anencefálicos.
…o verdadeiro cara, uma presidenta coração valente guerreira do povo brasileiro mulher mulher mulher blablablá. Nenhum desses heróis teve a coragem de sequer pronunciar a palavra “aborto”. Ao contrário, ambos se aliaram sem qualquer pudor à bancada da Bíblia…
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Nós tivemos, durante 13 anos, um governo que se dizia de esquerda, e que se dizia muito preocupado com uma agenda supostamente progressista: o presidente mais popular de todos os tempos, o verdadeiro cara, uma presidenta coração valente guerreira do povo brasileiro mulher mulher mulher blablablá. Nenhum desses heróis teve a coragem de sequer pronunciar a palavra “aborto”. Ao contrário, ambos se aliaram sem qualquer pudor à bancada da Bíblia, frequentaram templos, fizeram discursos pseudorreligiosos que contrariavam as suas próprias crenças.
Quem tem uma esquerda assim não precisa de direita.
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Li que a Vigilância Sanitária destruiu 610 quilos de alimentos no Rock in Rio. Seiscentos e dez quilos. Há alguma coisa muito errada quando mais de meia tonelada de comida vai para o lixo num evento que, afinal, não é feito por amadores. Não dá para acreditar que tantas empresas e chefs sérios, que têm nomes a zelar, tenham levado tanta comida ruim para uma vitrine desse tamanho. Acho que fiscalização é muito importante, mas bom senso é ainda mais. Essa proporção de desperdício não fala contra os restaurantes; fala contra a fiscalização e contra a lei.
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A cozinha da Roberta Sudbrack não seria a cozinha da Roberta Sudbrack sem produtos artesanais, feitos por pequenos produtores. Ela é uma campeã dos sabores brasileiros, da comida feita com atenção e inteligência, do resgate de coisas nossas que estão se perdendo no mundo da grande indústria e da larga escala. Há outros chefs trilhando o mesmo caminho, com menor ou maior sucesso, vários até por influência dela.
E aí chegamos ao impasse. A lei exige o selo do SIF, e, enquanto a lei não mudar, o selo do SIF será necessário — mas os pequenos produtores, que trabalham em escala artesanal e que são a alma de uma gastronomia genuinamente nacional, simplesmente não conseguem o raio do selo do SIF. Vamos deixar de consumir o que fazem? Vamos deixar os muitos sabores do Brasil presos nessa roda de eterna burocracia?
Dura lex, sed lex. Mas será que já não passou da hora de se repensar a lex?
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No meio dessa semana absurda e deprimente, só faltava mesmo aparecer um general falando em golpe. O último general Mourão de que eu me lembro entrou para a História como A Vaca Fardada.

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coraCORA RÓNAI – É JORNALISTA. Mora no Rio de Janeiro

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