Não dá voto. Por Aylê-Salassié F. Quintão*

NÃO DÁ VOTO

 Aylê-Salassié F. Quintão*

…Desta vez, levei um grande susto. Rever a negação da história da civilização ocidental, por Gramsci, me deixou cabreiro. Realçava ele a necessidade da destruição das instituições, da educação formalizada nas escolas…

Os políticos não estão nem aí. É tempo de eleições. Sessenta mil venezuelanos desembarcaram no Brasil nesses três últimos anos. Esse fluxo repentino de imigrantes afrouxa a linha imaginária da fronteira nacional, desestabiliza o cotidiano das populações fronteiriças e preocupa cada vez mais os governos estaduais, receptores compulsórios desses contingentes expulsos da terra de origem pelo caos institucional e econômico que se instalou no país vizinho.

Não passa pela cabeça de nenhum candidato à presidência república os problemas que estão chegando e os que vão ser gerados a partir deste processo caótico de transferência populacional, a exemplo do que vem ocorrendo na Europa.

Para os conspiracionistas, o quadro faz lembrar à ocupação da Criméia pelas populações russas migradas para a Ucrânia. Remete também aos anos oitenta no Brasil, quando, na universidade, a maioria dos professores e alunos renderam-se ao pensamento de Antonio Gramsci, o filósofo político comunista italiano, mantido preso por 10 anos pelo regime fascista de Mussolini, e que pregava uma revolução silenciosa, induzida ou não. Mas, alternativa às guerras assassinas de conquista.

Os textos e livros de Gramsci serviam de alento para aqueles que não cultivavam no pensamento revolucionário, o ódio e a violência explícita como método.  Estavam nas bibliografias recomendadas, nas livrarias dos campus, e as “cartas de cárcere” eram degustadas como narrativas romanceadas.

Gramsci estava na esteira da desconcentração do pensamento ortodoxo comunista e que fez surgir um grupo de intelectuais chamados, pejorativamente, de revisionistas. Entre eles, dei de cara com o francês Louis Althusser, acusado de “estruturalista”. Depois com figuras fantásticas como Ricouer, Foucault, Orwell, Mészarós, Lukács, Deleuze.

Terminei caindo dentro da apelidada “nova esquerda”, e ali me defrontei com dois a três pensadores independentes, já extravasando as bordas, como Goffman, Certeau, Bauman. Era e é muita gente pensando uma maneira de entender o mundo e formas de modificar o curso da história na busca da justiça social! Suas reflexões fazem tremer dois mil anos de fundamentos civilizatórios herdados da cultura helênica e das conquistas romanas.

Em tempos mais recentes, resolvi retomar algumas leituras, e voltei a Gramsci. Lá estava ele pregando a destruição da cultura ocidental, acusando a igreja católica de ser um cancro na sociedade, ensinando a demonizar adversários e tratando a família como um retrocesso. Desta vez, levei um grande susto. Rever a negação da história da civilização ocidental, por Gramsci, me deixou cabreiro. Realçava ele a necessidade da destruição das instituições, da educação formalizada nas escolas, e das práticas sociais enraizadas. Defendia a expropriação privada, e a adoção do que poderia ser classificado (por quem) de politicamente correto. Enfim, pregava o caos. Isso seria possível por meio de uma ruptura cultural.

Aos poucos, foi-se detectando no pensamento do italiano também um certo grau de religiosidade – que ele tanto condenava -, não sei se por culpa dele ou de quem o lia. Surpreendia, porque crenças mistificam modelos, estados, instituições e até utopias. Gramsci foi fundo: a revolução seria cultural, mas a dele não seguiria os rumos da experiência histórica, e seu processo dialético de transformações. Angustiado na prisão, tinha pressa, e isso começou a confundir todo mundo, inclusive nossas elites revolucionárias.

Ora, quando se confronta valores paradigmáticos adotados pela Europa com as novas práticas culturais e costumes trazidos pelas levas de imigrantes da Ásia e da África é de se assustar. Falar em mundo europeu e civilização europeia é algo que parece só se confirmar na unidade de propósito do modo de dominação colonialista comum adotado, em que o cristianismo se insere como uma espécie de ponta de lança. O helenismo domesticou os povos mediterrâneos, e os romanos cristianizados disciplinaram as crenças. Os europeus não são uma unidade cultural – existem na Europa mais de 40 línguas oficiais e etnias. Mesmo com essa diversidade, acreditam ter força suficiente para absorver essa onda de práticas novas e crenças diferentes trazida pelos estrangeiros.

Os fluxos migratórios, induzidos ou não, tem aumentado, e prometem grandes problemas em um futuro próximo. Para além das paranoias pessoais, Donald Trump parece ser um dos poucos a temer a avalanche disruptiva que se prenuncia. Nos EUA vivem hoje 44 milhões de estrangeiros. Antecipando-se aos seus efeitos, o presidente dos EUA está propondo ao Congresso um financiamento ao governo do México para executar um programa de contenção de imigrantes, desembarcados no País, com destino aos Estados Unidos. A loucura de todos contra todos não é pouca. À parte as sombrias previsões de Gramsci, irônico é o fato de que a maioria dos migrantes para os EUA são asiáticos: 45 % do total no ano passado. A diáspora venezuelana já soma 2,5 milhões de pessoas. Isso não incomoda por aqui, não dá voto. Por tudo isso o Brasil precisa de um projeto de Nação, e não de programas de candidatos.

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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília.

 

1 thought on “Não dá voto. Por Aylê-Salassié F. Quintão*

  1. Infelizmente essa é uma questão importante, que é evitada porque não dá voto e porque criou-se uma versão simplista de que a solução é “tudo” ou “nada” e para os partidários de cada lado, qualquer discussão sobre o assunto é abominável.

    Quanto mais rasa discussão, menor a chance de se resolver o problema.

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