RATCHED

Ratched: o elegante perfume de tragédia no ar. Por Wladimir Weltman

RatchedEm setembro de 2020 a série RATCHED estreou na Netflix. Na época não quis assistir. O motivo é que ainda me lembrava do filme UM ESTRANHO NO NINHO de Milos Forman, com Jack Nicholson, Danny DeVito, Christopher Lloyd e Louise Fletcher no papel da tirânica enfermeira Ratched. Uma das vilãs mais sutis e aterradoras do cinema. Até hoje lembrar do filme me deixa mexido, apesar de ser considerado um dos grandes da década de 70, tendo obtido cinco Oscars (Melhor Filme, Ator, Atriz, Diretor e Roteiro), além de vários Globo de Ouro e BAFTA. A serie atual trata da vilã de UM ESTRANHO NO NINHO, a enfermeira Mildred Ratchet, que bate de frente com o protagonista do filme vivido por Jack Nicholson.

Recentemente, depois de ter visto a maioria dos bons seriados e filmes disponíveis nas tevês a cabo e streaming, baixei a guarda e comecei a assistir RATCHED.

A série estrelada por Sarah Paulson no papel-título conta das origens da tal enfermeira, que em 1947 procura emprego num importante hospital psiquiátrico na Califórnia.

A tradução da palavra inglesa Ratched é catraca ou roleta, mas na gíria americana tem mais de um significado. Pode ser algo excelente, emocionante, ou serve de insulto para algo ou alguém inútil ou promíscuo. Todas essas definições casam de certa forma com a personagem. Aparentemente Mildred Ratched é uma enfermeira exemplar, eficiente, impecável, indispensável. Mas nas catracas de sua mente, giram projetos nefastos e planos assustadores. Como a publicidade da NETFLIX informa: “O exterior elegante de Mildred esconde uma escuridão crescente em estado latente, revelando que os verdadeiros monstros são feitos, não nascem”.

Na clínica chiquérrima da Califórnia em que ela consegue se infiltrar, procedimentos como choques elétricos, medicação exagerada, duchas de jatos d’agua frias, banhos excessivamente quentes e lobotomias são práticas comuns. Uma câmara de horrores medievais decorada  no melhor estilo “Barroco Moderno”, criação de um decoradora americana dos anos 20, 30 e 40 e que tem uma ligação profunda com o Brasil. O nome dela era Dorothy Draper e ela foi responsável pela decoração do hotel mais trágico da era do jogo no Brasil, o Quitandinha de Petrópolis.

Até 1946 os cassinos no Brasil faziam sucesso, impulsionavam a economia, geravam milhares de empregos, e deslanchavam carreiras artísticas. Carmen Miranda despontou para a fama mundial através do Cassino da Urca, no Rio de Janeiro; passatempo favorito do cineasta americano Orson Welles em sua estadia na cidade. Por isso resolveram construir em Petrópolis, o maior hotel-cassino da América do Sul. Joaquim Rolla, o grande empresário do jogo no Brasil idealizou o lugar com um exterior em estilo normando e para o interior quis importar uma atmosfera hollywoodiana. Para isso contratou a americana Dorothy Draper, favorita das estrelas do cinema. Numa área de 538.000 m², o Quitandinha tem banheiros de mármore, lustres cravejados de cristal, um sistema de iluminação poderoso o suficiente para iluminar uma cidade com 60.000 habitantes e vastos salões para até 10.000 pessoas por vez. Dorothy gastou 10 milhões de dólares no seu interior. Os hóspedes do Quitandinha eram milionários, estrelas de cinema, políticos.

Passaram por seus salões celebridades como Errol Flynn, Orson Welles, Lana Turner, Henry Fonda, Maurice Chevalier, Greta Garbo, Walt Disney, Carmen Miranda, Bing Crosby e políticos como Getúlio Vargas e Evita Perón.

 

 

Infelizmente o sonho de Rolla acabou no dia 30 de maio de 1946, quando o presidente da república Eurico Gaspar Dutra proibiu o jogo no Brasil. Incapaz de sobreviver apenas como hotel, o Quitandinha desde então foi definhando, mas teima em permanecer ali, como um fantasma de um passado de glorias. Um verdadeiro mausoléu de uma era dourada que acabou.

     Assistindo RACHED na NETFLIX imediatamente identifiquei a influência “Draperiana” nos cenários e mesmo nos figurinos da série. Fui pesquisar e, batata. A jornalista Mara Reinstein publicou matéria na AD, na véspera do lançamento de RATCHED informando que a diretora de arte da série, Judy Becker, buscou inspiração nas decorações que Dorothy criou para grandes hotéis nos EUA e no Brasil: “Ryan Murphy (o criador do projeto) queria que a clínica parecesse um hotel chique que havia sido reaproveitado, mas ainda mantinha muito do seu glamour. Algo que desse vontade no público de morar lá, mas escondendo os horrores que acontecem por trás das portas. Evitando um clima estranho, como seria de se esperar, criamos um contraste maior para os eventos que se desenrolam ali… Nós nos esforçamos para recriar os interiores elegantemente trabalhados de Dorothy Draper com a maior precisão possível”.

É interessante que a equipe de direção de arte do seriado tenha ido buscar inspiração em Dorothy Draper e seu estilo de decoração. Em minhas muitas férias em Petrópolis, na infância e adolescência, ia praticamente todos os dias ao Quitandinha. Nos anos 60 o lugar virou um clube que moradores locais e veranistas frequentavam.

Religiosamente ia ao Quitandinha para bater uma bola no ginásio interno, jogar boliche, patinar no gelo e nadar na piscina aquecida e coberta. Terminava a tarde com meus amigos bebendo um “Bloody Mary” temperado, mas sem álcool, ou seja, suco de tomate batido com gelo, sal, pimenta e molho inglês, num dos diversos bares do hotel.

Minha imaginação passeava pelos belos salões do Quitandinha imaginando-me num filme, numa aventura de espionagem internacional, ou ainda viajando no tempo. Mas no meu intimo o que sentia era uma profunda melancolia que definitivamente pairava no ar. Como se tudo fosse apenas um sonho (ou um pesadelo), que teimava em não se desintegrar.

 

O que de certa forma remete a gente ao livro de Ken Kesey (1935-2001) “One Flew Over The Cuckoo’s Nest”, que serviu de base para o filme UM ESTRANHO NO NINHO. Kesey foi um escritor, jornalista, professor e expoente da contracultural americana. Ele se considerava um elo entre a “Geração Beat” dos anos 1950 e os hippies dos anos 1960. Ainda jovem na universidade participou de estudos governamentais envolvendo drogas alucinógenas (mescalina, LSD, etc), que em plena era da contracultura recriou com seus “Merry Pranksters” (comunidade hippie ambulante) num show chamado “The Electric Kool-Aid Acid Test” em que recriavam os efeitos das drogas com luzes e sons e com ele percorreram as estradas dos EUA. Para isso viajavam num um ônibus escolar pintado com cores psicodélicas chamado Furthur. No filme ACROSS THE UNIVERSE o ônibus pintado de Dr. Robert (Bono) é uma referência ao ônibus de Kesey e dos “Merry Pranksters”.

Kesey e seus hippies, com suas roupas coloridas, cabelos grandes, drogas e comportamento anárquico se opunham à sociedade americana considerada normal e “bem-comportada”, o chamado “estabelecimento”. Algo que parece ser o tema do livro e do filme UM ESTRANHO NO NINHO, onde uma Mildred Ratched quarentona governa com mão de ferro sua ala do hospital psiquiátrico no Oregon e duela com o bem-humorado, Randle Patrick “Mac” McMurphy.

A primeira vez que tomei conhecimento de Ken Kesey, suas obras e sua importância para a contracultura – algo em que participei nos anos 70, com as mesmas roupas rasgadas e coloridas, barba e cabelos longos e mais “sex, drugs and rock n’ roll” – foi lendo o livro do meu querido Luiz Carlos Maciel “Nova Consciência” (1972). Foi também ali que entendi muito do que havia por traz daquele movimento natural da minha geração na busca dessa anarquia vivencial chamada contracultura. Algo que mexeu com jovens nos quatro cantos do mundo, cada rincão impulsionado pela repressão local – EUA o “estabelecimento” falsamente patriótico que suportava os “bons costumes” e a Guerra do Vietnã; no Brasil a ditadura militar; na Europa, em que a esquerda decepcionada com o fim da primavera de Praga e que evidenciava a face totalitária do comunismo soviético, se empolgou com a liderança anárquica de Daniel Cohn-Bendit. Todos esses jovens abriram corações e mentes para a doce revolução dos hippies. Era o sonho da Era de Aquarius que nos dava esperanças de um mundo melhor.

É portanto sintomático que nos tempos atuais, em que os EUA acabam de sair do jugo idiótico de um Donald Trump, mas num mundo que segue povoado por figuras sinistras como Jair Bolsonaro, Vladimir Putin e Boris Johnson, as artes – capitaneadas por Hollywood, os canais a cabo e as streamings — estejam investindo maciçamente em obras protagonizadas por mulheres, gays, e todas as outras minorias eternamente subjugadas pelo “estabelecimento” mundial. Quem ainda acredita que as definições de “esquerda & direita” tem a ver somente com ‘socialismo versus capitalismo’, definitivamente perdeu o trem da história.

Curiosamente o barroco, também conhecido como rococó, era o estilo decadente representativo da aristocracia e que foi literalmente derrubado junto com a monarquia na Revolução Francesa. O rococó infundia no mundo da arte e do design um idealismo aristocrático que favorecia a ornamentação elaborada e os detalhes intrincados. Moldura perfeita para um mundo de reis, rainhas e sua nobreza. Totalmente oposto a realidade nua e crua do resto da humanidade.

Quando a quebra se instalou na sociedade os autores, artistas e ativistas apontaram a superficialidade da aristocracia e a irreverência desse estilo na representação do mundo. O que os artistas parecem estar buscando no momento é avisar a atual “aristocracia” que cabeças rolarão (“Ah! ça ira, ça ira, ça ira”)…

Encontrei há pouco um livro que parece falar sobre tudo isso. Trata-se de “The Art of Activism: Your All-Purpose Guide to Making the Impossible Possible”, de Stephen Duncombe e Steve Lambert, em que discutem a importância de lutar no terreno da cultura popular para atingir um público de massa. Os autores usaram como base sua experiencia em treinar centenas de ativistas e artistas em todo o mundo nos últimos 12 anos. Sua mensagem principal? Como o terreno político de hoje é de signos, símbolos, histórias e espetáculos, os ativistas devem aprender a operar nesse espaço cultural se quiserem mudar o mundo.

Seja como for, recomendo a quem tiver estômago forte para uma trama em que quase todos os personagens são movidos pelos sentimentos mais cruéis e mesquinhos; em que a perversidade é mascarada por uma aparência estilosa e grandiosa (barroca-rococó); e cujo clima de suspense promete emoções fortes a cada milímetro da caminhada, que assista a RATCHED, serie de produção primorosa e atuação impecável de um elenco de primeira linha. E vá dormir tranquilo, certo de que no ar existe muito mais do que apenas os aviões de carreira…

THE END?

 

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WLADIMIR WELTMAN – é jornalista, roteirista de cinema e TV e diretor de TV. Cobre Hollywood, de onde informa tudo para o Chumbo Gordo

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(DIRETO DE LOS ANGELES)

 

 

 

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