ELITE - RISCO

Um grupo que pouco se importa se o Brasil corre risco. Por Fernando Gabeira

Os kamikazes cumpriam missões suicidas na esperança de salvar seu país. A elite política busca se manter no poder

ELITE - RISCO

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, 
www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 11 DE JULHO DE 2022

Na semana passada, escrevi um longo artigo sobre essa PEC de benesses que atropela o equilíbrio fiscal, a Constituição e as leis eleitorais. Não vou repetir o tema nem os argumentos.

Apenas lembro mais uma vez: a expressão PEC Kamikaze é imprecisa. Os pilotos japoneses, na Segunda Guerra, cumpriam missões suicidas na esperança de salvar seu país. A elite política procura se manter no poder, colocando em risco o próprio Brasil.

Usei a expressão elite política, que talvez seja mais ampla que o próprio Congresso. Envolve acadêmicos, intelectuais; enfim, é um termo mais amplo. Mas o que aconteceu no Parlamento é um ato de representantes diretamente eleitos pelo povo.

É em torno desse tema, elite política, que pretendo divagar. Sempre volto à leitura de “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar. O que mais atrai nele é sua atitude diante da morte, algo que enriquece meu estudo sobre o tema no belo trabalho de Simon Critchley “O livro dos filósofos mortos”, uma análise sobre como morreram centenas de filósofos, dos gregos aos pós-modernos. Um dia, falo dele.

O Adriano que interessa aqui é o político de sensibilidade extraordinária. Ele achava que era importante tratar com bondade escravos, pobres, todos os que estavam na base da pirâmide social. Seu argumento era que deveriam se interessar pela sobrevivência e estabilidade de Roma.

Pensar isso no século II é um grande feito. Dizem que o século II foi especial porque os deuses tradicionais estavam em decadência, e o cristianismo ainda não havia sido imposto. Homens como Adriano e Marco Aurélio estavam mais livres para pensar. A visão de Adriano é uma aula elementar de segurança nacional.

Sem que o povo se interesse pelo país, nenhum exército o garantirá, independentemente de ter ou não as mais modernas armas. A Inglaterra mostrou isso na Segunda Guerra Mundial.

O que diria Adriano, 19 séculos depois, de uma elite que só pensa em si mesma e volta as costas para os interesses do povo? Que, mesmo num momento em que parece estar fazendo o bem, na verdade, está agredindo o país e, estrategicamente, tornando os pobres mais pobres ainda.

Por isso é que nas eleições de 2014 apareceu o slogan de Eduardo Campos: “Não vamos desistir do Brasil”. Não creio que isso teria algum efeito noutros países do mundo. Se surgiu no Brasil, no contexto de uma campanha presidencial, é por causa de um grande abismo: a estrutura estatal lá em cima e, no cotidiano, as pessoas cada vez mais alheias a esse mundo paralelo.

De certa forma, ninguém desiste do Brasil. Mesmo a diáspora no exterior mantém-se informada sobre o país. No cotidiano, continuamos a ouvir música brasileira, a torcer pelo futebol brasileiro, mas isso não tem nada a ver com a vida política nacional.

O que é interessante nos políticos brasileiros, creio que poderia chamar de estupidez, é a total insensibilidade para o abismo. Eles interpretam a indiferença como um sinal verde para seguir em sua marcha egocêntrica.

Não é preciso ser profeta para anunciar que o abismo nos engolirá. O orçamento secreto é usado para que cada um se eleja, sem considerar as condições gerais, que implicam outra racionalidade de gastos.

Na semana passada, o senador Davi Alcolumbre apresentou uma PEC para que parlamentares, sem nenhum preparo, ocupem embaixadas mantendo o mandato. Eles querem ir para Londres, Paris e Nova York recebendo como deputados e vivendo seus mandatos em outros países.

É um absurdo tão grande para quem analisa de fora, mas é compreensível. Podemos tudo: dividir a parte do leão do Orçamento, avançar nos cargos públicos e, ainda por cima, passar uma temporada no exterior, representando esse Brasil fantasma, onde reinamos diante da indiferença geral. Não queremos ser amados; isso é um luxo. Basta que não nos incomodem.

Se você pode chamar a estrutura político-burocrático-militar de Brasil, é possível dizer que, nesse sentido, muita gente já desistiu do país. O problema é se um dia descobrirem que este Brasil lhes foi roubado — e quem sabe com que violência responderão ao crime?

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