sarnentos

…Adultos, anciãos, crianças são obrigados a dormir no chão, sobre cobertores ou colchonetes puídos. Alimentam-se do que a caridade de funcionários lhes oferece. Não têm como tomar banho nem cuidar da saúde…

sarnentos

Décadas atrás, chamar alguém de “sarnento” era ofensivo. Não sei se esse xingamento ainda sobrevive no balaio de mimos atuais. No universo dos pré-adolescentes de antigamente, “sarnento” concorria com “leproso” e “peste bubônica”, finezas que evocavam doenças desaparecidas ou em via de extinção.

A sarna animal ainda persiste e ataca cachorros de rua. É doença de pele causada por um ácaro. A região infectada coça intensamente. De tanto se coçar ou se mordiscar, o cão acaba provocando feridas. Dá pena ver. Mas não se assuste: sarna animal e sarna humana são obra de ácaros diferentes. Ninguém pega essa doença de um cachorro. Em nosso país, a melhora nas condições de higiene fazem que a sarna humana esteja pouco a pouco desaparecendo.

Faz alguns dias, a mídia voltou a falar dos “náufragos do aeroporto”. Refiro-me aos refugiados afegãos que, ao cabo de um roteiro penoso, demorado e perigoso, chegam a Guarulhos – o mais importante aeroporto da América do Sul – e, não tendo para onde ir nem dinheiro para se virar, por lá permanecem encalhados. Adultos, anciãos, crianças são obrigados a dormir no chão, sobre cobertores ou colchonetes puídos. Alimentam-se do que a caridade de funcionários lhes oferece. Não têm como tomar banho nem cuidar da saúde.

Se a triste história daquelas dezenas de infelizes saiu nos jornais é porque estavam começando a representar um perigo para a saúde pública: praticamente todos eles estavam com sarna, doença altamente contagiosa que se transmite por simples contacto.

Me pareceu estranho que tantos refugiados consigam chegar ao Brasil e, em seguida, que o aeroporto seja o fim do caminho, sem perspectiva de seguir adiante. Coisa esquisita, não? Como é que entram no país? Com visto ou sem?

Não foi preciso pesquisar muito. Fiquei sabendo que esses afegãos são titulares de visto humanitário concedido por representação brasileira no exterior. Fiquei sabendo também que o Brasil concedeu mais de mil vistos a afegãos candidatos a asilo. Mas entendi também que a generosidade do Itamaraty é parcimoniosa: fornecem visto aos infelizes mas, para o resto, eles que se virem.

Essa gente teve de vender tudo o que tinha (que não era grande coisa) e lançar-se em aventura complicada. Deixar o Afeganistão já é arriscado; passar fronteiras até chegar a um aeroporto de onde possam voar para o Brasil é programa perigoso, especialmente para quem tem poucos recursos e ainda por cima leva mulher e filhos pequenos.

Para os que conseguem chegar ao Brasil, a “acolhida” é uma pancada na cabeça. Ninguém os espera, não há estrutura de apoio, não há quem lhes dê um teto, não há quem pense em proporcionar-lhes alimentação, curso de língua, cuidados de saúde. Nada. Nothing. Nulla.

A Prefeitura de Guarulhos tem um abrigo, mas alega que está lotado. Assim sendo, os recém-chegados ficam à mercê de algum milagre, num país estranho, com língua estranha, comida estranha, dormindo no chão. E transmitindo sarna uns aos outros.

Na verdade, não acredito que tenham apanhado essa doença em Guarulhos. É muito provável que já a tenham trazido do exterior e que a promiscuidade do acampamento no aeroporto só tenha feito aumentar o contágio.

E pensar que, na virada do século 19 para o século 20, quando aportavam 70 mil imigrantes por ano, o Brasil estava mais bem aparelhado para recebê-los. Embora o país fosse muito mais pobre que hoje, as autoridades se entrosaram e foram capazes de oferecer acolhida digna para os que chegavam. Não se tem notícia de que, por falta de assistência, imigrantes tenham sido obrigados a dormir no cais do porto ou se cobrir com andrajos e se alimentar de doações de almas caridosas.

…Lá pelos anos 1980, entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores, vários haviam conhecido as agruras do exílio. Haviam conhecido na própria pele o drama de chegar numa terra estranha, sem lenço nem documento, empurrado pelo destino…

Depois que a mídia relatou o escândalo, rapidamente as autoridades se mexeram e instalaram os náufragos de Guarulhos numa colônia de férias à beira-mar. Tem afegão que passou 20 dias acampado no aeroporto. Agora estão sendo cuidados – vamos ver até quando. Enquanto isso, novas levas continuam chegando ao Brasil.

Ninguém se refugia em outro país de coração alegre. Se um indivíduo deixa o país de origem e se aventura do outro lado do mundo, num lugar estranho, não é por espírito de aventura juvenil. É porque as coisas estão muito muito feias. Os motivos são diversos: guerra, violência, fome, perseguição religiosa ou étnica.

Se nosso governo federal concede visto humanitário, não deve lavar as mãos e achar que já cumpriu sua obrigação. A acolhida de um refugiado é muito mais que um carimbo num passaporte.

Lá pelos anos 1980, entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores, vários haviam conhecido as agruras do exílio. Haviam conhecido na própria pele o drama de chegar numa terra estranha, sem lenço nem documento, empurrado pelo destino.

Seria interessante que os petistas, que atualmente detêm o poder, tornassem a encarnar o espírito universalista de que são herdeiros. Que desçam do pedestal da glória passageira e deem uma mão aos pequeninos.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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