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Os despachantes. Por Luiz Concistré

… Despachantes…Depois do fenômeno Beppe, os algoritmos tornaram-se efetivamente os instrumentos do caos: Steve Bannon, o Facebook (em conluio com a Cambridge Analytica) e tantos outros manipuladores deixaram-nos hoje com uma plêiade de “beppes”…

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Houve época em que comprar um carro em São Paulo era muito complicado. Não havia essa moleza de ir à concessionária, pagar, combinar o dia da entrega, pegar o carro e ir embora. Era necessário “licenciar”, e era o novo proprietário quem fazia isso.

Era uma verdadeira maratona, de guichê em guichê. Pagava-se a placa, o lacre, o imposto X, a taxa Y; pegava-se fila, fazia-se inspeção, pegava-se outra fila, entregavam-se os recibos. Alguém carimbava um por um, outro conferia, um terceiro colocava a placa, um quarto o lacre, e um quinto cobrava uma graninha para parafusar a placa no carro.

Porém, dava-se um jeito. Nessa bagunça toda, havia um “prestador de serviços” chamado despachante. Mediante uma quantia, ele resolvia tudo em um passe de mágica: pulava todos os guichês, pagava as devidas propinas e entregava o carro emplacado e devidamente legalizado.

Meu pai tinha profunda aversão a esse esquema desonesto. Ele usava uma frase que descrevia com precisão o sistema: “Criam dificuldade para vender facilidade”. E emendava: “São parasitas, não produzem nada, são apenas atravessadores e, esteja certo, meu filho, isso irá se espalhar — tem futuro”.

Profética sua fala. Com o passar do tempo, fui esbarrando aqui e ali com inúmeros atravessadores: cartórios, despachantes para as mais diversas atividades, intermediários de negócios e por aí vai. Gente que, por não produzir, não tem lucro — e sim, renda.

O neoliberalismo já havia dado um golpe no crânio do capitalismo quando sua papisa declarou que era preciso “soltar a fera do capitalismo”, por meio da desregulamentação generalizada dos movimentos financeiros. A partir daí, instaurou-se a farra do capital improdutivo[1] — um verdadeiro tsunami especulativo que culminou com a crise de 2008. Para alguns, agosto de 2008 foi o réquiem da economia dos papéis. No entanto, o que os governos norte-americano e europeu fizeram foi buscar inspiração em Keynes — porém prostituindo completamente sua ideia, injetando dinheiro não para salvar a economia real, mas sim aqueles responsáveis pela crise.

Só o governo norte-americano injetou cerca de US$ 700 bilhões para salvar as agências Fannie Mae e Freddie Mac, a gigante de seguros AIG e bancos como J.P. Morgan, Goldman Sachs e Morgan Stanley. No caso das agências, o governo Bush as reestatizou.

Abram as bilheteiras, o circo voltou. John Maynard Keynes que se revire no túmulo — mas a economia real perdeu o seu lugar. O rentismo seguiu seu caminho mundo afora e, em paralelo, a economia real cometeu um ato de “esperteza” que hoje cobra um preço alto: “Ei, pessoal, vamos produzir na China, porque lá a mão de obra é quase de graça”.

A precarização do trabalho, a destruição do conceito de Estado de Bem-Estar Social, não haviam sido suficientes para assegurar a exploração desejada pelo neoliberalismo, que já não tentava mais se disfarçar como teoria econômica e assumia de forma escancarada seu caráter ideológico meta-fascista. Caráter evidente quando o Chile, sob a ditadura sangrenta e abjeta de Pinochet, se tornou o “laboratório de uma reforma neoliberal”. Os “Chicago Boys” e Milton Friedman consideravam conveniente que o laboratório ocorresse sob um regime ditatorial, tal o grau de supressão de direitos que seria levado a cabo. Regimes autoritários são ideais para impor políticas impopulares, aproveitando-se da repressão e da ausência de qualquer possibilidade de contestação.

Sem dúvida, o capitalismo neoliberal — ou turbo-capitalismo, como certa vez ouvi — foi extremamente bem-sucedido. Do ponto de vista da criação e acumulação de riqueza, não há paralelo na história. É uma vitória do sistema e uma derrota para a humanidade, já que alcançamos algo como 1% da população mundial concentrando 45% dos ativos financeiros globais.

Foi bem-sucedido também na colonização das mentes. Com o auxílio da mídia corporativa e manobrando com esmero o poder das redes sociais, torceu conceitos e transformou a precarização em sinônimo de “liberdade”. Fez o escravo amar suas correntes — a tal ponto que, ao dizer isso em uma roda de precariados (todos somos, a menos que você seja um rentista), quase fui linchado. Prova definitiva de que a frase está correta. Algo como: C.Q.D. – como queríamos demonstrar.

Nesse período todo, deixaram a China de lado, os “escravos” a produzir coisas. Distraíram-se, enquanto ela se preparava para surgir no cenário mundial com um poder que alterou tanto a geopolítica quanto a economia global. Essa “distração” está custando muito caro ao Ocidente — e a falência da chamada “civilização ocidental” já não é uma hipótese, mas um fato consumado.

Voltemos à era do “turbo-capitalismo”. Com uma coreografia perfeita entre o jornalismo corporativo e o uso extremamente estratégico da Internet, celebramos o casamento perfeito dos neoliberais colonizados com a extrema-direita.

A essas alturas, a Internet já havia liquidado com as esperanças tolas daqueles que a viam como um instrumento de ampliação do conhecimento e democratização da informação. Indomável, tornou-se um monstro de manipulação e uma ameaça assustadora à sanidade mental — instrumento de imbecilização coletiva, presente no bolso de cada cidadão do planeta, capturando sua atenção e alimentando-se via algoritmos, dotando-se de um poder extraordinário.

Os algoritmos chamaram a atenção, primeiramente, por seu uso na política. Na primavera de 2007, no simbólico dia 8 de setembro, a praça Maggiore de Bolonha e cerca de 200 cidades italianas amanheceram abarrotadas de gente. Era o V-Day; o “V” poderia ser de vingança, ou, como intitulou seu autor — o comediante Beppe Grillo —, o Vaffanculo Day. Ninguém se deu conta do que estava ocorrendo até esse dia.[2]

Por meio de blogs e meetups, Beppe e Casaleggio[3] criaram uma força política imensa, catalisando o ódio e a revolta, colocando o establishment italiano em polvorosa. Casaleggio criou um “Beppe” para cada público: religioso para quem frequentava a igreja, fascista para quem visitava o túmulo de Mussolini, adorador de Maradona para quem torcia pelo Napoli.

A manipulação da opinião pública não era novidade. Aqui no Brasil, a Rede Globo — que, a partir de 1965, havia se tornado porta-voz da ditadura —, nas eleições de 1989, criou a patética figura de Fernando Collor, “O Caçador de Marajás”. Um embuste que deu vida às normativas do Consenso (!?) de Washington. O discurso era o mesmo: catalisação do ódio, criminalização da política e o Estado como um ente que precisa de um “gerente”.[4]

Depois do fenômeno Beppe, os algoritmos tornaram-se efetivamente os instrumentos do caos: Steve Bannon, o Facebook (em conluio com a Cambridge Analytica) e tantos outros manipuladores deixaram-nos hoje com uma plêiade de “beppes”. Alguns, como o próprio Beppe, são humoristas — caso de Zelensky. Outros são fascistas declarados, como Viktor Orbán; outros, figuras escatológicas, como Bolsonaro. A lista segue: Donald Trump, Elon Musk, Oleh Tyahnybok, Marine Le Pen, Nikolaos Michaloliákos, Matteo Salvini, Rodrigo Duterte, André Ventura (o “Bolsonaro português”), Benjamin Netanyahu e tantos outros.

Casaleggio Júnior definiu com precisão: “A Internet é um instrumento de controle”.

Se o alcance na política foi tão extenso, o que terá acontecido com a economia?

Retorno à profecia de meu pai: “Atravessador é uma profissão de futuro”. Resultado: entre o cliente e o restaurante, interpôs-se o iFood; entre o motorista e o passageiro, o Uber; entre o consumidor e o mercado, o cartão de crédito; entre o hóspede e o hotel, o Trivago; entre o doente e o médico, o plano de saúde; entre o comprador e o fabricante, a Amazon. (Nota do autor: não estou fazendo um juízo de valor, apenas pontuando novos entes econômicos.)

São novos atores econômicos super-poderosos que mudaram de maneira decisiva a vida de todos. Do consumidor ao fabricante, estamos todos nas mãos dos algoritmos. Peça à Alexa o preço de um televisor e, em todos os lugares da Internet — no seu e-mail, nas redes sociais, nos sites que você visitar — o algoritmo o colocará diante da televisão desejada.

São poderosos, onipresentes, porém são atravessadores. Nada produzem, são intermediários. Não são empresas que vivem de lucro, mas de renda. Se o rentismo já havia ferido de morte o modo capitalista de produção, essas corporações deram o tiro de misericórdia.

Essa nova realidade econômica foi descrita por uma obra essencial do economista Yannis Varoufakis: Technofeudalism: What Killed Capitalism.[5] Ele explica, com clareza, por que criou o termo “tecnofeudalismo”. A saber:

“No feudalismo, o poder da classe dominante provinha da propriedade de terras que a maioria não podia possuir, mas às quais estava vinculada.
No capitalismo, o poder derivava da propriedade de um capital que a maioria das pessoas não possuía, mas com o qual tinha que trabalhar para ganhar a vida.
No tecnofeudalismo, uma nova classe dominante deriva seu poder da propriedade do “capital da nuvem”, cujos tentáculos enredam a todos nós.”

Se por um lado nada produzem, por outro, quase nada geram de emprego ou investimento. Ao sr. Jeff Bezos basta recolher os ganhos obtidos — cerca de 40% [6]— dos produtores e dos consumidores capturados pelas Alexas e algoritmos, e aplicá-los no carrossel financeiro, retirando esse dinheiro da economia. O lucro envolve risco, está exposto à concorrência. A renda exige um bom sofá, um copo de vinho e algo para se distrair.

O capitalista à moda antiga precisa se manter competitivo; para isso, retorna parte do seu resultado como investimento no desenvolvimento ou aperfeiçoamento de seus produtos. Além disso, por mais automatizado que esteja, ainda tem nos salários o componente majoritário de seus custos. Nos feudos tecnológicos, estima-se que, no máximo, 15% dos custos fixos correspondam a salários.

Nós, mortais comuns — os capitalistas e os desenvolvedores —, trabalhamos de graça para o capital da nuvem. Crie um novo joguinho para celular: em breve, ele será baixado milhares ou milhões de vezes na Play Store do Google ou na Apple Store. Nesse jogo, como no pôquer: “Se você está na mesa e não sabe quem é o pato, o pato é você.”

“Cujos tentáculos enredam a todos nós.” Influenciam como consumimos, produzimos, compramos, vendemos, trabalhamos, ganhamos, nos comportamos.

As consequências estão visíveis (e poucos querem enxergar): debaixo das pontes, nos entregadores de comida em bicicletas alugadas de um banco, na precarização do trabalho, nas enfermidades mentais em verdadeira epidemia, nos empregos como fonte de depressão, angústia e medo.

Medo — todos estão com medo, e não sabem bem de quê.


[1]     Vide: “A Era do Capital Improdutivo: a nova arquitetura do poder, sob dominação financeira e destruição do planeta” de autoria do Professor Ladislau Dowbor.

[2]     Vide: “Os Engenheiros do Caos de Giuliano Da Empoli”

[3]     Ibidem

[4]     Essa tese ridícula é usada até hoje pelos candidatos bancados pelo establishment.

[5]     Ainda sem edição em português

[6]     Yannis Varoufakis: https://www.youtube.com/watch?v=cpiWYbL-8nw&t=355s


Luiz Antonio Concistré - São Paulo, São Paulo, Brasil ...LUIZ  CONCISTRÉ – Bacharel em Ciências Econômicas e Políticas pela Universidade de São Paulo, especializado na área de planejamento e gestão empresarial.

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