
O remédio e o mamoeiro. Por Antonio Contente
Quem primeiro percebeu foi o homem, que fez a pergunta clássica sobre ser ou não ser. Sim, a mulher concordou, tratava-se mesmo de um mamoeiro, e até deu a pista para justificar o ter nascido na pequena fissura do chão duro.
Pequena sala com pia de cozinha mais fogão a um canto, banheiro e quarto, era tudo que precisavam para ser felizes. De fato foram, porque a felicidade, afinal, não é que esteja necessariamente nas coisas simples, porém nos locais onde a vida nos permite achá-la. O que, de alguma forma, começou a complicar, foi que se o espaço ali parecia suficiente para o amor e o encanto, aos poucos se revelou pequeno para tantos sonhos. Talvez, até, o pé de mamoeiro tenha sido um sinal, um detonador. Pois brotou de um dia para o outro, numa pequena fenda no cimento quase na frente da porta do, digamos assim, tugúrio. Quem primeiro percebeu foi o homem, que fez a pergunta clássica sobre ser ou não ser. Sim, a mulher concordou, tratava-se mesmo de um mamoeiro, e até deu a pista para justificar o ter nascido na pequena fissura do chão duro.
— A semente veio no cocô de algum passarinho; a água da chuva a colocou ali e ela germinou.
Assim, no entorno, os sonhos cresciam. Com dinheiro pouco, ou até por isso mesmo, iam se acumulando as esperanças. Que, porém, na medida em que não se realizavam, adubavam as pequenas frustrações que, na moça, se transformaram em leve depressão.
— Meu Deus – ela disse certa tarde – porque só pra nós não pinta o que tanto queremos?
— Ora – ele respondeu – quem precisa de mais se até um mamoeiro já temos?
Duas noites depois ela chegou com a caixa de remédio. Ele observou a tarja preta; perguntou, veio a informação de que se tratava de um antidepressivo.
— Sabe a minha irmã? Está tomando e se sentindo muito bem. Espero que passe essa fossa pelas coisas que não deslancham.
Na verdade ele não percebeu logo as modificações. Mas ao fazê-lo, umas duas semanas depois, já foi no impacto de ouvir a criatura dizer que estava de partida. Ciciou pequeno discurso para apontar que o que os cercava era muito pouco, que para ter as coisas idealizadas precisava ir; que se ao longo da vida perdera muito tempo agora era a ocasião de recuperá-lo.
— O remédio me fez tornar à razão. Caiu a ficha – disse.
— Mas fez você perder a alma – ele respondeu – vou ficar sozinho até…
— Não – ela cortou – sozinho não, você ficará com o mamoeiro.
Ela partiu na mesma noite, jogando-o na dimensão safada da barriga fria, do negro mais negro do que as asas das graúnas. De manhã, depois da dura insônia, ele saiu para dar de cara com o mamoeiro diante da porta. Que, de resto, só foi mamoeiro até a semana seguinte quando o vizinho, arguto chacareiro, o informou da realidade: tratava-se apenas de um mato qualquer com as folhas parecidas. Mas hoje, tantos anos depois, sempre que lembra da história nosso herói tem certeza que o arbusto de fato era o que pensou ser. E que, ao longo de muitos verões que não acompanhou por ter também tomado outro rumo, deu frutos lindos e dourados. Como raios de sol, como trigais balançando aos ventos das manhãs, ou como um punhado de moedas antigas. Cintilações como as dos sonhos que a moça foi buscar e ele nunca soube se ela, de fato, algum dia encontrou. Mesmo sendo facilmente acháveis bem ao lado do pote com as barras de ouro embaixo da ponta do arco-íris…
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.