dilema da Ciência

O dilema da ciência. Por Aldo Bizzocchi

Dilema da ciência…em razão da importância estratégica do saber científico, pesquisadores que produzem conhecimentos úteis para o Estado ou para a economia costumam ganhar muito dinheiro e prestígio. E é aí que começa o problema.

dilema da ciência
A coroa do rei e a banheira de Arquimedes

Mais ou menos desde o século XVIII, a ciência passou a gozar do prestígio e da credibilidade antes conferida somente à religião. Tanto que o conceito de verdade deixou de ser o que está escrito na Bíblia e passou a ser aquilo que pode ser provado cientificamente. Sobretudo os prodígios da aplicação do conhecimento científico à solução de problemas práticos, aquilo a que chamamos de tecnologia, mostraram que a ciência é um tipo de explicação da realidade muito superior à filosofia, à religião e ao senso comum. Mas também é verdade que, desde os seus primórdios, a ciência sempre manteve estreitas relações com a política e a economia. Já na Grécia antiga, o grande cientista Arquimedes desenvolveu várias técnicas e ferramentas para servir aos interesses do poder. Por exemplo, ele descobriu o princípio da hidrodinâmica — e saiu às ruas nu gritando eureca — porque o rei Hierão II lhe havia solicitado que medisse a densidade de ouro de sua coroa. Ele também inventou um espelho que concentrava os raios solares num único ponto (o ponto focal) e que, levado nos navios de guerra gregos, queimava as velas dos navios inimigos.

Ainda hoje, as descobertas científicas logo ganham aplicações tecnológicas que contribuem para a agricultura, a indústria, as comunicações, os transportes e mesmo o nosso dia a dia (veja-se o telefone celular, por exemplo). Se a indústria farmacêutica investe milhões de dólares para desenvolver novos medicamentos, não é porque se preocupa com a saúde das pessoas, é porque remédios geram lucro. Nesse sentido, enquanto uma pequena parte dos cientistas faz pesquisas para alargar os horizontes de conhecimento do ser humano e saciar nossa curiosidade, a maioria das pesquisas visa a produzir conhecimento aplicável nas atividades econômicas ou militares. Um exemplo é o recente e bem-sucedido ataque americano aos bunkers iranianos: nada disso teria sido possível sem muita investigação científica.

Mas, em razão da importância estratégica do saber científico, pesquisadores que produzem conhecimentos úteis para o Estado ou para a economia costumam ganhar muito dinheiro e prestígio. E é aí que começa o problema. Em primeiro lugar, as universidades, lócus principal da produção do conhecimento, têm pressionado cada vez mais seus docentes a gerar conhecimentos inovadores e a publicá-los; essa pressão é conhecida pelo lema em língua inglesa publish or perish, “publique ou pereça”. De fato, pesquisadores com baixos índices de aceitação de artigos para publicação, especialmente nos grandes periódicos, correm até o risco de perder seus empregos. Na corrida pelo conhecimento de ponta, as universidades acabam privilegiando a quantidade em detrimento da qualidade; ainda que os índices cientométricos, que avaliam estatisticamente o impacto das publicações, de seus autores e das universidades que os financiam, procurem destacar as pesquisas de maior relevância, o fato é que o volume de publicações de uma determinada instituição ou pesquisador também pesa, e muito. A ânsia de publicar sempre e mais leva a que muitos autores recorram ao autoplágio, isto é, publiquem vários artigos sobre o mesmo tema, dizendo basicamente as mesmas coisas, apenas com outras palavras e outro título — às vezes, até parágrafos inteiros de um artigo são reproduzidos em outro, num verdadeiro mecanismo de “copia e cola”.

Mais grave ainda, alguns investigadores menos éticos manipulam dados para chegar à conclusão desejada, aquela que vai causar mais impacto na comunidade acadêmica — veja a esse respeito meu artigo “Impostura científica lá e aqui” (https://diariodeumlinguista.wordpress.com/2025/06/02/impostura-cientifica-la-e-aqui) —, ou chegam a fraudar pesquisas e falsificar descobertas, como fez um determinado paleontólogo, que uniu a cabeça de um fóssil à cauda de outro e alegou ter descoberto uma nova espécie de réptil pré-histórico.

Mas a cereja do bolo é a atual invasão da inteligência artificial na atividade científica. Se de um lado ela trouxe grandes avanços e melhorias à prática da pesquisa, como decifrar em minutos um texto antigo escrito numa língua desconhecida que havia permanecido por séculos indecifrável ou resolver em segundos equações complexíssimas, que levariam décadas para ser resolvidas à mão, por outro lado ela também trouxe malefícios, afinal a função da IA deveria ser a de auxiliar o pesquisador e não substituí-lo. Por exemplo, triar e organizar em minutos milhares de dados, o que exigiria um trabalho hercúleo do investigador humano, poupa tempo, esforço e recursos. No entanto, há gente hoje dentro da academia que usa IA não apenas para organizar dados, mas também para extrair deles conclusões e, o que é pior, para redigir o artigo que apresentará esses dados e essas conclusões. Portanto, esses profissionais estão sendo remunerados, as mais das vezes com dinheiro público, para não fazer nada. E o mais grave é que, como sabemos, a inteligência artificial por vezes alucina, produzindo informações falsas. Como confiar num conhecimento produzido por uma máquina que não tem ética nem mecanismos de autocorreção?

O fato é que, além do tradicional vínculo entre a ciência e o poder, que há séculos já vem desvirtuando boa parte da atividade científica, levando-a a criar tecnologias que servem mais para o mal do que para o bem, agora a própria credibilidade da ciência vem sendo posta em xeque. De um lado, as universidades foram sendo ao longo das últimas décadas aparelhadas por docentes adeptos da chamada teoria crítica, da filosofia pós-moderna, do desconstrucionismo, do anti-intelectualismo, do materialismo dialético, do marxismo, do decolonialismo, do identitarismo — em suma, professores e pesquisadores de esquerda (em alguns casos, de extrema-esquerda), mais afeitos à militância ideológica do que à metodologia científica. De outro, a ascensão da extrema-direita nos últimos anos como reação a essa contaminação ideológica da academia, da mídia e até da Justiça fez emergirem discursos negacionistas dos mais diversos matizes: antivacinismo, terraplanismo, criacionismo bíblico… Se, desde o triunfo do Iluminismo no século XVIII, a ciência passou a ser a régua a medir o que é verdade e o que não é, relegando crenças a redutos mais refratários ao pensamento racional e influenciando até mesmo a atividade legislativa, hoje em dia afirmar que algo está cientificamente provado não quer dizer muita coisa; em tempos de relativismo cultural, em que a opinião vale mais do que o fato — especialmente se essa opinião parte de alguém socialmente oprimido ou minorizado —, ou de pós-verdade e fake news, em que a veracidade de uma alegação depende de seu propósito político, a ciência ficou relegada a ser apenas mais um discurso na avalanche de narrativas que permeiam as redes sociais. E, diga-se de passagem, em um mundo em que o estatuto de verdade é estabelecido pelo número de likes e pelo engajamento, a ciência é um discurso bem pouco viral.

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ALDO BIZZOCCHIAldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.

Autor, pela Editora GrupoAlmedina, de “Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”

Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br

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