Carrascos, judeus e clareza. Por Josué Machado

CARRASCOS, JUDEUS E CLAREZA

Por Josué Machado

Quase sempre é preferível sacrificar a fluência da ordem direta em benefício da clareza da frase.

O articulista português publicou no jornal brasileiro um texto com o seguinte período:

“Como Steiner repetidamente escreve em várias das suas obras, o continente europeu foi aquele onde era possível escutar Schubert ao jantar e, na manhã seguinte, gasear judeus de consciência limpa.”

Sim, “(…) gasear judeus de consciência limpa”, escreveu o articulista.

Lembremos que gasear significa submeter alguém à ação de gases tóxicos ou sufocantes. Como faziam os nazistas em seus campos de concentração exercitando a “banalidade do mal”, na definição de Hannah Arendt (1906-1975) em seu livro “Eichmann em Jerusalém”.

Do ponto de vista formal, o importante no período do articulista é que a ordem direta da última oração produz efeito aparentemente imprevisto por ele. Por certo ignorou que a frase poderia induzir alguém a atribuir a expressão “consciência limpa” aos judeus e não aos executores: “…judeus de consciência limpa”.

Contou com a possibilidade de todos os seus leitores serem bem informados e com a aparente evidência de que tal expressão só poderia se referir aos executores, eventuais ouvintes das sensíveis composições de Schubert, e não às próprias vítimas.

Isso, embora o trecho “judeus de consciência limpa” possa sugerir ao leitor que os judeus é que tinham a consciência limpa, porque a explicação (de consciência limpa) está ao lado do substantivo judeus — uma observação sem sentido naquela circunstância.

Esse é um caso em que a construção pode causar estranheza, mas dificilmente provocará dúvida sobre o significado da frase, a menos que o leitor seja toscamente desinformado.

O escriba por certo preferiu a ordem direta – sujeito, verbo e complementos –, em que a frase flui melhor, mas, para evitar a possível estranheza, teria feito bem em sacrificar a fluência em nome da clareza, qualidade essencial de um texto. Assim:

“Como Steiner repetidamente escreve em várias das suas obras, o continente europeu foi aquele onde era possível escutar Schubert ao jantar e, na manhã seguinte, de consciência limpa, gasear judeus.”

Desse modo, a expressão ferina se mantém claramente ligada aos bem jantados e impolutos carrascos e não às vítimas famélicas.

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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.

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