Homo Eletronicus. Por Marisa Bueloni

Homo Eletronicus

 Marisa Bueloni

Outro dia, ouvi no rádio um pagode, cuja letra começava assim: “Faz tempo que você não me liga e nem uma carta me manda”. Fiquei pensando se o autor não deveria ter escrito “e nem um e-mail me manda”. Sim, porque estamos na era do celular e do torpedo, do computador e do e-mail, do MSN e da webcam. As pessoas só faltam se tocar via internet. Por enquanto, se falam e se veem. O toque fica por conta da imaginação de cada um.
Fico pensando outra coisa: a geração de hoje só escreve e-mails e talvez nunca tenha escrito uma simples carta. De papel. Carta, carta mesmo, tá ligado? Muitos não conheceram a graça e a ventura de começar algo com um “Prezado Senhor”, ou “Querida Maria”, e quem sabe um apaixonado “Amor da minha vida”, dois pontos.  Sabe lá o que é escrever uma carta de amor? Só mesmo uma raça em extinção e os últimos românticos ainda a estão escrevendo. Ou desistiram também? Ah, não, por favor, não parem. Vocês vão salvar o planeta!
Escrever cartas é uma arte. Das mais belas. Antigamente – acho que devem existir ainda, não sei – havia publicações sobre o assunto. Podia-se entrar numa livraria e comprar um manual de cartas sociais, cartas comerciais e empresariais e… cartas de amor. Quanta gente desinspirada copiou trechos inteiros e mandou a carta, com o coração acelerado.

Como é que soam as palavras de amor no âmbito eletrônico? Chegam ao destinatário, íntegras e carregadas de suas intenções, artesanais e puras? 

Valha-me Deus, se aquele não foi um tempo maravilhoso. O tempo em que todos nós escrevíamos o que chamávamos intelectualmente de “missivas”, os carteiros entregando a correspondência e a gente indo abrir a caixa do correio perto do jardim da casa, com o coração aos pulos. Será que chegou a que eu espero? Que emoção entrever o envelope com a caligrafia amada, ou o tipo de máquina já conhecido.
A maioria escrevia à mão. Ou seja, as cartas eram “manuscritas”. (Até alguns vocábulos soam estranhos hoje…). Mas os chiques tinham uma máquina de escrever em casa para elaborar um currículo, mandar as matérias para o jornal e  escrever as cartas sublimes. Tínhamos de comprar blocos de papel sem pauta e envelopes. E selos. Mas isso era lá na agência do correio. Sim, com chuva e tudo, sair de casa, e ir até o correio postar uma carta.
Escrever uma carta é um gesto de amor. Ninguém mais escreve. Hoje, escrevemos e-mails. É emocionante também. Porém, é mais frio. Feito aquele “frio inteligente” de que nos fala Clarice Lispector. Temos de ser pessoas do nosso tempo e imprimir virtudes inefáveis na armadilha tecnológica, a fim de que endureçamos, pero sin perder la ternura.
Como é que soam as palavras de amor no âmbito eletrônico? Chegam ao destinatário, íntegras e carregadas de suas intenções, artesanais e puras?  Álvaro de Campos disse que “as cartas de amor são ridículas; não seriam cartas de amor se não fossem ridículas…”. Rubem Alves, comentando o dito, conclui que “afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor são ridículas”.
E segundo o mesmo bravo Rubem, “cartas de amor são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel.”
Um e-mail de amor é menos ridículo? Ou a virtualidade eletrônica é incompatível com o amor? Quem vence tal barreira epistemológica? Quero crer que o amor saia vitorioso na brutal queda de braço. Outra coisa: por que quase não telefonamos? Melhor teclar que ouvir a voz do outro?
Sim, lutamos com palavras, diz o poema. E teclamos, mal rompe a manhã. Não é a luta mais vã – afirmo, cheia de esperança. Com o perdão de todas as arcádias, peço licença para cometer uma heresia filo-poético-tecno-qualquercoisaquevocêqueira-odara: o e-mail sabe a que veio.
E toca a valsa digital:
– Kd vc?
– Aki.
Que coisa amorosa! Pronto, já se encontraram. É uma nova linguagem para o velho amor. Mudou o Natal ou mudei eu? O que mudou, turma? Mudou o veículo, ou mudou a palavra? Um terapeuta meu amigo disse que o homem é o mesmo, desde a criação do mundo. Das mais antigas eras, ao tempo dos signos virtuais. Ele ri, chora, ama, odeia, tem compaixão, sofre, sonha…
Também este velho homem está um pouco em cada um de nós. O do gelo, o das cavernas, o de Neanderthal, o Erectus, o Sapiens e agora, por minha conta, o Eletronicus. Não segui a sequência evolucionista, claro, citei de orelha. Só para deixar uma pergunta no ar: depois do Homo Eletronicus, qual será o próximo? Quem vem a seguir? E como ele escreverá uma mensagem de amor?

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MARISA BUELONI –  É jornalista. Vive em Piracicaba, SP

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