De acordo com os números divulgados pelo Banco Central o setor público consolidado registrou em 2011 um superávit primário equivalente a 3,1% do PIB, atingindo sua meta fiscal e, aparentemente, retornando ao padrão que vigia antes da crise internacional. Este é um dos motivos apontados pelo BC para a queda da chamada “taxa neutra” de juros: com um desempenho fiscal melhor, parte da tarefa de controlar a demanda interna sai dos ombros do BC, permitindo que – tudo o mais constante – possa atingir a mesma meta de inflação com uma taxa de juros mais baixa.

Há, todavia, mais coisas entre as linhas do balanço do setor público do que supõe nossa vã contabilidade. De fato, como tenho chamado atenção há algum tempo, muito da melhora das contas públicas não reflete um aperto fiscal efetivo, mas sim operações bastante controversas, isto para não mencionar ganhos não recorrentes de receitas. Sem entrar nesta última questão tenho estimado nos últimos anos o que chamei de superávit primário ajustado, definido a partir do resultado divulgado pelo BC, do qual, porém, deduzo algumas receitas e despesas cujo efeito sobre a demanda interna é distinto do associado às receitas e despesas habituais do setor público.

Do lado da receita excluo os proventos com concessões e dividendos, assim como, no caso específico de 2010, as “receitas” decorrentes da cessão onerosa dos direitos de exploração de petróleo. Do lado das despesas removo o Fundo Soberano, além da capitalização da Petrobrás, também ocorrida em 2010. Aplicando estes procedimentos ao resultado do setor público no ano passado, estimo que o superávit primário ajustado, que representa uma avaliação mais precisa da real contribuição da política fiscal ao controle da demanda interna, teria ficado em 2,5% do PIB.

É bom dizer que este número representa um progresso considerável sobre o desempenho sofrível de 2009 e 2010 quando – sob a justificativa de uma política fiscal anticíclica – o superávit primário ajustado ficou na casa de 1,2% do PIB. Todavia, quando comparado ao comportamento pré-crise, torna-se impossível evitar a conclusão que a política fiscal tem sido consideravelmente mais frouxa do que a observada no período 2003-08.

Naquele momento o superávit primário ajustado atingiu em média o equivalente a 3,2% do PIB, bem mais do que o observado no ano passado. Receitas com concessões e dividendos representavam então cerca de 10-15% do resultado primário, saltando para nada menos do que 25% do saldo registrado nos dois últimos anos, fenômeno que explica a diferença crescente entre o superávit primário oficial e minha versão ajustada.

Some-se a isto o crescimento, mais uma vez, das despesas federais. Apesar da conversa de um “corte” de R$ 50 bilhões no ano, observamos – como aliás previ nesta coluna – um aumento dos gastos (já ajustado à inflação) da ordem de R$ 24 bilhões, apesar da redução de quase R$ 3 bilhões dos investimentos federais. Note-se, aliás, a mão “amiga” da inflação: se esta tivesse ficado na meta (ha, ha, ha), o aumento do gasto teria sido o equivalente a nada menos do que R$ 32 bilhões. O motivo me escapa, mas tal desempenho ganhou o rótulo de “austeridade”.

As implicações são, porém, mais graves que uma guerra de rótulos. O BC, ao estimar o efeito do superávit primário sobre a inflação, trata de forma igual os resultados observados entre 2003-08 (mais altos) e o números correntes (bem mais baixos), ou seja, superestima consideravelmente a contribuição real da política fiscal neste momento e, consequentemente, subestima a taxa neutra de juros.

Posto de outra forma, trata qualquer coisa vinda do bufê de saladas como alface, mesmo que o freguês tenha enchido o prato de parmesão. Funciona no restaurante, mas a balança, bem como a inflação, tem um jeito especial de descobrir quando sofremos de autoengano.
Não dá para ver a salada?

1 thought on “Autoengano

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