Figuras mitol—gicas, como os homens-morcegos invadem o Bumb—dromo com suas cores e danas. Photo © Catherine Krulik

Pra tudo se acabar na quarta-feira, ô, ô, Aurora. Por Rogério Menezes

Pra tudo se acabar na quarta-feira, ô, ô, Aurora

Por Rogério Menezes

Originalmente no Correio da Bahia, edição de 15 de outubro de 2017
Visto assim de hoje, do alto deste mega apocalíptico 2017, aquela longínqua e pueril manhã soteropolitana do começo dos anos 1980 vislumbra-se como marco zero do fim-do mundo-que-nunca-vai-acabar – [taí o busílis, o paradoxo, o xis do caixão]. Foi ali e naquela hora: o caminhão perdeu o freio e começou a descer ladeira abaixo, desgovernado, e deu na merda que deu, e dá na merda que dá, e dará na merda que dará.
Ao som da primeira trombeta anunciadora, faltou-me ar. Meus ouvidos acabavam de captar notícia aterradora no noticiário da tevê: doença letal se alastrava pelo mundo e vitimava homossexuais. Chamavam-na ‘peste gay’. Não tinha cura. Surtei. Segui para a varanda do apartamento onde morava – Ladeira da Fonte 8-ap-903, Campo Grande, nesta capital – e berrei:  – Acabou!
[Antes tivesse acabado. Era abril de 1982].
Multidões de homossexuais morreram mundo afora nos anos 1980-1990. Treco-troço chamado Camisa de Vênus virou objeto de culto instantâneo. Aqui e além-mar, mortos-vivos varados pelo mal eram exibidos nas tevês ou se arrastavam, esquálidos, pelas ruas.
Afligia-me. Nunca fui santa – logo, tinha medo. Se gripe me invadia varava-me o pensamento de que a ‘maldita’ havia estuprado as minhas entranhas e eu seria o próximo a morrer.
Foi difícil a travessia, pá. A notícia de que teste feito em laboratório detectava o fato de o vírus já estar dentro de nós me assustou mais do que a própria doença. A vida, caprichosa e cheia de truques, se encarregou de me colocar no prumo. Aconteceu no Rio de Janeiro.
[Era outubro de 1988].
Meu pai fora internado em estado terminal no Hospital São Vicente de Paulo, na Tijuca – era praxe familiares doarem sangue, apenas utilizado caso não se registrasse a presença de impurezas.  Quis fugir. Sumir. O irmão e as duas irmãs já tinham feito a parte que lhes cabia. E agora, Roger, o que fazer?
Nada a fazer, Roger. Segue o caminho do patíbulo, Roger. Deixe-se imolar, Roger. Quem mandou prevaricar tanto, Roger?  Na hora H do dia D lá estava eu, braço esticado, devorado pela culpa, deixei-me sangrar.
Mantinha-me calmo  enquanto três espadas pairavam sobre minha cabeça:
  1. O estado de saúde de meu pai piorava dia a dia. 2. O teste provaria que eu tinha Aids. 3. Minha família saberia que eu sou homossexual. In box, enfermeira me chama para conversa. Meus irmãos me olham com curiosidade e preocupação.
Ouço o veredito: – Há registro de que você se relacionou por via sexual com alguém que tem o vírus da hepatite C, mas não se contaminou. Está tudo bem com você, ok?
[O coração quase escapuliu pela boca, parou na garganta – e eu me fortaleci no enfrentamento das mazelas, pragas e misérias que nos assolaram e nos assolam e nos assolarão neste armagedon infinito. Tim-tim! Da vida nada se lava!]
[Status deste domingo, 15 de outubro de 2017: a Aids virou doença crônica que ainda mata.
Viados viramos rotina. A homofobia, essa cascavel peçonhenta, também. A intolerância e o obscurantismo fazem amor por telepatia – Ave Maria!]
IMAGEM ABERTURA: 

FOTO DE CATHERINE KRULIK - LIVRO CARNAVAIS DO BRASIL, ED. PEIRÓPOLIS

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ROGÉRIO MENEZES – ESCRITOR E JORNALISTA, COLUNISTA DO CORREIO DA BAHIA

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