Lava Jato à portuguesa. Por Mathias Alencastro

Lava Jato à portuguesa

Por Mathias Alencastro

… O Ministério Público teve de desvendar evidências e coletar provas sem o instrumento da delação premiada. Em Portugal, a medida é tida como controversa, não angariando a unanimidade das avaliações no sistema judiciário…
Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 16 de outubro de 2017, coluna do autor
No final da semana passada, Portugal parou para assistir ao novo capítulo da Operação Marquês. O Ministério Público denunciou o ex-premiê José Sócrates (2005-2011) por 31 crimes. Qualquer semelhança com a situação brasileira é pura coincidência, uma vez que tudo tem sido diferente na Lava Jato portuguesa.
Resumindo, a acusação de mais de 4.000 páginas afirma que Sócrates fez do seu gabinete um balcão de negócios. Em troca de contratos públicos, empréstimos e até de intervenção estatal, empresários e banqueiros abasteciam na Suíça contas detidas pelos seus comparsas.
Entre as três dezenas de acusados estão Ricardo Salgado, ex-patrão do finado Banco Espírito Santo, antes conhecido como o Dono disto tudo, e Zeinal Bava, ex-executivo da Portugal Telecom e da Oi. O Estado espera recuperar mais de 58 milhões de euros desviados pela corrupção.
… A estratégia de vitimização de Sócrates, que chegou ao ridículo de comparar a sua situação com a do prisioneiro politico da ditadura angolana Luaty Beirão, repugnou a opinião pública. Ele, que foi um dos políticos mais populares desde a redemocratização, terá de se defender inteiramente isolado e marginalizado.
As investigações começaram em 2014 e, apesar da cobertura frenética da mídia, o procurador principal da investigação, Rosário Teixeira, e o juiz de instrução, Carlos Alexandre, seguem sendo ilustres desconhecidos quando passeiam por Lisboa. As raras entrevistas de Carlos Alexandre levaram à abertura de um inquérito pelo Conselho Superior de Magistratura. Por conta desses deslizes, os advogados da defesa esperam poder impedí-lo de continuar no processo.
O Ministério Público teve de desvendar evidências e coletar provas sem o instrumento da delação premiada. Em Portugal, a medida é tida como controversa, não angariando a unanimidade das avaliações no sistema judiciário. Boa parte dos advogados é contra, enquanto juízes e procuradores contestam a sua legitimidade. Em todo caso, a acusação, extraordinariamente completa e minuciosa, de acordo com a avaliação de especialistas, mostra que é possível avançar no combate à corrupção recorrendo a meios jurídicos ou legais convencionais.
A Operação Marquês causou enorme comoção na sociedade portuguesa, sem reverter para uma caça às bruxas. A primeira detenção de Sócrates, em 2014, aconteceu poucos dias antes de um de seus ex-ministros, Antonio Costa, substituí-lo na liderança do Partido Socialista.
As tentativas oportunistas da oposição de associar os dois políticos não surtiram efeito, e Costa se tornou primeiro-ministro em 2015. Duas semanas atrás, seu partido saiu como grande vitorioso das eleições autárquicas.
A estratégia de vitimização de Sócrates, que chegou ao ridículo de comparar a sua situação com a do prisioneiro politico da ditadura angolana Luaty Beirão, repugnou a opinião pública. Ele, que foi um dos políticos mais populares desde a redemocratização, terá de se defender inteiramente isolado e marginalizado.
O último desdobramento da Operação Marques chega num momento em que Portugal atravessa a sua melhor fase desde o começo do século: o crescimento do PIB atinge números históricos, e a classe política reconquistou uma imagem positiva. E, talvez ainda mais importante, a credibilidade das instituições, que se destacaram pela sua discrição, permanece intacta.

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MATHIAS ALENCASTRO – É cientista político e doutor pela Universidade de Oxford. Escreve na Folha de S.Paulos às segundas, a cada duas semanas, sobre política europeia e africana.

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