Saudades de Galeano. Por José Paulo Cavalcanti Filho

SAUDADES DE GALEANO

Por José Paulo Cavalcanti Filho 

… peço permissão para lembrar um amigo querido que também se foi. Eduardo Galeano era quase 10 anos mais velho. O que não quer dizer muita coisa. Quem intermediou essa relação foi Fernando Pessoa. De alguma forma, éramos irmãos em Pessoa…

O tempo anda ligeiro. George Bernard Shaw até dizia que Não são as horas que são preciosas. São os minutos. E o pior, nesse tempo que não para, é a procissão de mortos que nos deixa como herança. Fazer o quê?
Hoje, peço permissão para lembrar um amigo querido que também se foi. Eduardo Galeano era quase 10 anos mais velho. O que não quer dizer muita coisa. Quem intermediou essa relação foi Fernando Pessoa. De alguma forma, éramos irmãos em Pessoa. A amizade com Hugale, assim se assinava, era diferente das outras. Nos falávamos quase toda semana. Mas só por e-mails. Não foi caso único, em minha vida. O mesmo se deu com (Norberto) Bobbio, talvez maior filósofo do século XX. Ainda estudante, fui seu primeiro tradutor para o português. Em numerosos artigos aqui publicados. Trocamos longa correspondência, pela vida. Talvez um dia publique essas cartas –  não havia e-mails, naquela época. E nunca nos encontramos, fisicamente.
Em 2012, decidiu escrever um livro diferente, “Os filhos dos dias”. Em que sempre, ao acordar, escrevia uma pequena história. Para lembrar amigos. Por cima de cada relato, apenas a data em que foi escrito e pequeno título…
Voltando a Galeano, quase não nos víamos. Uma vez aqui, outra ali, pelo mundo. A última em Brasília.  Prometeu vir, no próximo verão, à praia. Não virá. É pena. Deixou-nos uma bela coleção de frases com seu rosto. Escolho algumas, em sua memória: 1. Viver cada dia como se fosse o primeiro, e viver cada noite como se fosse a última. 2. O ar seja limpo de todo veneno que não provenha dos medos humanos e das humanas paixões. 3.As Loucas da Praça de Maioserão um exemplo de saúde mental. Porque elas se negaram a esquecer, nos tempos de amnésia obrigatória. 4. Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados. Porque eles se desesperaram de tanto esperar e eles se perderam de muito, muito procurar.
Neste Natal, ele não estará mais conosco. É pena. O mundo chora por ter perdido um grande pensador. Comprometido com nosso rosto latino-americano, que corria em suas veias abertas. Estamos precisando de mais pessoas como ele…
Em 2012, decidiu escrever um livro diferente, “Os filhos dos dias”. Em que sempre, ao acordar, escrevia uma pequena história. Para lembrar amigos. Por cima de cada relato, apenas a data em que foi escrito e pequeno título. Em um ano, estava pronto o tal livro. Logo mandado às livrarias. Em homenagem a ele, segue um desses textos. Aquele com data “dezembro 11”. Quase acerta na data; que nosso primeiro neto homem, José, nasceu dois dias antes, no sábado passado. Segue o texto:
Dezembro 11. O poeta que era uma multidão. Pelo que se acreditava, Fernando Pessoa, o poeta de Portugal, levava dentro dele outros cinco ou seis poetas. No final de 2010, o escritor brasileiro José Paulo Cavalcanti concluiu sua pesquisa de muitos anos sobre alguém que sonhou ser tantos. Cavalcanti descobriu que Pessoa não abrigava cinco, nem seis: levava cento e vinte e sete hóspedes em seu corpo magro, cada um com seu nome, seu estilo e sua história, sua data de nascimento e seu horóscopo. Seus cento e vinte e sete habitantes haviam assinado poemas, artigos, cartas, ensaios, livros… Alguns deles tinham publicado críticas ofídicas contra ele, mas Pessoa nunca havia expulsado nenhum, embora deva ter sido difícil, suponho, alimentar uma família tão numerosa.
Neste Natal, ele não estará mais conosco. É pena. O mundo chora por ter perdido um grande pensador. Comprometido com nosso rosto latino-americano, que corria em suas veias abertas. Estamos precisando de mais pessoas como ele. Sobretudo em nosso tão complicado Brasil. Especialmente agora, quando a desesperança campeia.
Apesar de tudo, de tantas perdas, mas também com ilusões que se renovam, segue a vida. Saudades de Hugale.
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José Paulo Cavalcanti FilhoÉ advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.

jp@jpc.com.br

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