Jogos da nova temporada. Por Fernando Gabeira

JOGOS DA NOVA TEMPORADA

FERNANDO GABEIRA

… Era um governo contra a corrupção e, na hora H, ajuda Tóffoli a neutralizar o Coaf… A ideia geral não era seguir o dinheiro? Agora é proibido seguir o dinheiro…

- PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO E
 NO SITE OFICIAL DO AUTOR – WWW.GABEIRA.COM.BR, 
EDIÇÃO DE 9DE AGOSTO DE 2019

Um governo que era contra a corrupção na hora H ajuda Tóffoli a neutralizar o Coaf.

Com a volta do Congresso e do STF, o delicado equilíbrio de forças entre os três Poderes precisa ser decifrado.

Comecei a ler o livro Os Onze, de Felipe Recondo e Luiz Weber, na busca de mais informações sobre os bastidores e a história recente do STF. A ideia era entender melhor como esse Poder se desdobra no futuro próximo. Constatei no livro que um marco profundo na dinâmica do STF foi a morte de Teori Zavascki. Não só foi alterada a correlação de forças entre eles, mas perdeu-se uma figura agregadora. Isso impulsionou a criação de ilhas independentes, com grande desenvoltura para decisões monocráticas.

Mas a grande linha divisória desde o princípio foi a Lava Jato. Poucos sabem, mas a operação chegou de certa forma ao próprio STF. Foi um episódio ligado à Construcap, que doara R$ 50 mil a um membro do PT com nome Tóffoli. Parecia ser o do ministro. No mesmo ano, o irmão de Tóffoli disputou as eleições como deputado estadual. O mal-entendido deixou cicatrizes.

Nas suas mais recentes decisões, Tóffoli comportou-se como diante de cerco se fechando contra ele. E se antecipa de uma forma que faz do STF não um contrapeso democrático, mas um novo peso pesado em nossos temores.

Tóffoli começou criando um inquérito guarda-chuva para combater acusações ao STF. Agregou Alexandre de Moraes como seu delegado. O que surgiu disso? Buscas na casa de pessoas que apenas criticavam o Supremo. E logo em seguida a censura à revista Crusoé, precisamente a que tinha revelado relações financeiras atípicas entre ele e sua mulher.

Num novo passo, Tóffoli proibiu as investigações a partir de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), quebrando o ritmo dos trabalhos, rompendo acordos internacionais, dificultando até a entrada do Brasil na OCDE.

Agregou o presidente Bolsonaro, uma vez que atendeu a um pedido da defesa de Flávio.

Finalmente, Alexandre de Moraes suspendeu a fiscalização de ministros do Supremo e outras autoridades, alegando serem tendenciosas.

Como não protestar contra a decisão de Tóffoli, se atinge o núcleo de sua atividade, que é o controle das atividades financeiras? E mais: atinge também compromissos externos do Brasil.

Um manifesto de 195 auditores afirma que são cruzamentos automatizados que definem o objeto de fiscalização mais rigorosa. Não há nada de pessoal ou político nisso.

Tanto Tóffoli como Gilmar Mendes condenam, com razão, os vazamentos. Mas, ora, basta punir quem vazou. Na realidade, os vazamentos que prejudicam os investigados acabaram se transformando em algo contraproducente no fim das investigações.

O presidente Bolsonaro assinou uma medida provisória colocando a Funai no Ministério da Agricultura. Derrotado, assinou de novo, o que é ilegal numa mesma legislatura. O Supremo funcionou como um contrapeso. Mas quem funcionará como contrapeso quando o STF avança? O Congresso, a outra ponta do triângulo, observa com uma resistência localizada no Senado o pedido de CPI da Lava Toga.

Nesses últimos movimentos, Tóffoli e Moraes investiram contra a liberdade de imprensa e agora criam um cinturão de aço protegendo alguns ministros e suas mulheres da fiscalização financeira.

Para completar o quadro, o diretor do Coaf, Roberto Leonel, está sendo pressionado a sair porque Bolsonaro não gostou de suas críticas à decisão de Tóffoli proibindo o Coaf de levantar pistas para órgãos de investigação. Como não protestar contra a decisão de Tóffoli, se atinge o núcleo de sua atividade, que é o controle das atividades financeiras? E mais: atinge também compromissos externos do Brasil.

A briga pela domesticação do Coaf é uma briga feia. Tóffoli e Bolsonaro estão juntos, a esquerda está se lixando para o Coaf. O próprio Moro se vê diante da perda do Coaf e, agora, da de seu indicado para dirigi-lo. No quesito engolir sapo, segue no seu aprendizado político.

Era um governo contra a corrupção e, na hora H, ajuda Tóffoli a neutralizar o Coaf… A ideia geral não era seguir o dinheiro? Agora é proibido seguir o dinheiro.

O Congresso tem se fixado na reconstrução econômica, o que é a prioridade indiscutível. Por algumas manifestações de Rodrigo Maia, críticas à Lava Jato, sente-se que o clima ali, com exceção do pequeno núcleo no Senado, tende a ser favorável a essa movida de Tóffoli e Bolsonaro.

…A ideia geral é de que a lei vale para todos. De certa maneira, o País terá de chegar a um acordo sobre isso, pois transcende as divergências com a Lava Jato. Um sistema de controle de transações financeiras é essencial para combater o crime organizado, o terrorismo e a própria corrupção…

Há muito caminho pela frente: plenário do Supremo, resistência institucional, pressão externa – pode ser que o bom senso ainda prevaleça. De qualquer forma, um novo capítulo se abre também com a chegada do inquérito dos vazamentos da Lava Jato. Vem para as mãos de Moraes. O conteúdo das mensagens poderá trazer novas tensões, sobretudo num ponto sensível: investigação de ministros.

Os ministros que divergem da Lava Jato não são só ilhas, mas um arquipélago no STF. Algumas vulcânicas e em erupção, como Tóffoli, que neutraliza o controle efetivo de transações financeiras para atender, entre outros, o filho do presidente, as mulheres dos ministros.

Parece-me às vezes uma utopia. Nem Trump está livre desse incômodo.

A ideia geral é de que a lei vale para todos. De certa maneira, o País terá de chegar a um acordo sobre isso, pois transcende as divergências com a Lava Jato. Um sistema de controle de transações financeiras é essencial para combater o crime organizado, o terrorismo e a própria corrupção. Ele ultrapassa os limites nacionais pela troca de informações. É um sistema de defesa coletivo.

O cerne das divergências sobre a Lava Jato é a prisão em segunda instância. Se cair esse dispositivo, os presos por corrupção serão libertados. O impacto real será menor do que bloquear investigações. Pelo menos foi tudo desvendado. Na situação atual, simplesmente nada saberíamos.

Estamos no limbo, uma palavra que significa margem, esquecimento, mas também, no sentido religioso, aquele lugar para onde antigamente iam as crianças inocentes. Hoje não vão mais para o limbo. Vão para o céu. O que certamente não será o nosso caso.

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Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, onde produz semanalmente reportagens sobre temas especiais, por ele próprio filmadas (no ar aos domingos, 18h30, e em reprises na programação). Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas.

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