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Linguagem e pensamento crítico. Por Myrthes Suplicy Vieira

…O que foi feito de palavras tão úteis e precisas que frequentavam o vocabulário das pessoas antigamente, como cizânia e debacle?

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO BLOG BRASIL DE LONGE, edição de 13 de setembro de 2021

O que foi feito de palavras tão úteis e precisas que frequentavam o vocabulário das pessoas antigamente, como cizânia e debacle? Essas duas eram as palavras preferidas de meu pai quando ele queria impressionar seus convidados, ao formarem uma roda para discutir o eternamente conturbado cenário político e econômico brasileiro, depois do jantar.

Hoje em dia, quando penso nos vocábulos mais comuns usados por intelectuais, psicólogos e cientistas políticos para se referirem ao atual quadro de embates irracionais nas redes sociais, como “polarização”, “polêmica”, “discurso de ódio”, etc., me bate uma profunda tristeza e saudade pela perda desses termos. Por mais arrogantes e esnobes que pareçam aos ouvidos dos mais jovens, não há como negar sua maior abrangência, elegância e precisão. Cizânia traduz-se por falta de harmonia, desinteligência, altercação, antagonismo, desavença, atrito, conflito, rixa, separação, incompatibilidade, inimizade – tudo isso sem precisar apelar para a condenação do extremismo do ideário autolimitado dos contendores. Já debacle, palavra emprestada do francês, tem a vantagem de conotar diretamente “mudança brusca que acarreta desordem ou ruína financeira”. Sinônimo de mau resultado, fracasso, queda, desastre, ela encurta o caminho lógico, mais uma vez sem recorrer às qualificações pejorativas dos projetos ‘flopados’.

Prima-irmã das duas, a palavra desídia parece ter um potencial ainda maior para denotar a falta que faz um estadista no poder – e, convenhamos, para variar um pouco nosso linguajar e contornar a inevitável irritação que experimentamos ao nos referirmos pela enésima vez à estreiteza mental do presidente e de seu ministro da Economia. Como informa o dicionário, desídia é “tendência de se esquivar de qualquer esforço físico e moral”, ausência de atenção ou cuidado, negligência, imprudência ou descaso. Quer maior precisão cirúrgica do que essa?

Muitos poderão argumentar que essas palavras não são do domínio das pessoas comuns do povo e que seu elitismo pode dificultar o necessário entendimento de todos. É verdade, mas nada como reeducar as pessoas a abandonarem suas bolhas ideológicas e buscarem nos dicionários a compreensão que lhes falta. Sei que estou chovendo no molhado, que cada geração adapta o sentido das palavras a suas vivências e necessidades contemporâneas, emprestando-lhes novos significados. Por exemplo, na primeira vez que escutei a palavra “sinistro” na gíria de um jovem participante de um grupo de pesquisa de mercado, levei um susto. Não sabia interpretar se a avaliação que ele fazia do produto carregava um significado positivo ou negativo. Foi só depois de esmiuçar a reação de outros jovens que compreendi a força e a extensão dessa palavra para transmitir admiração e identificação.

Lembro, nesse sentido, da polêmica iniciativa de uma escritora brasileira que decidiu “simplificar” a obra de Machado de Assis, substituindo os rebuscados – mas incrivelmente saborosos – termos típicos da época e do autor por outros mais “atuais”, de forma a facilitar o acesso dos mais jovens à leitura de seus clássicos. A proposta foi alvo de muita crítica e espanto: enquanto alguns literatos e intelectuais aprovavam a ideia sob o argumento de que “meio Machado é melhor do que zero Machado”, outros (entre os quais me incluo) condenavam acidamente a iniciativa, considerando-a uma “ode à preguiça mental”. Recentemente, tive a oportunidade de reler Memórias Póstumas de Brás Cubas, um dos livros que mais me haviam encantado quando eu ainda era uma adolescente. Pois não é que me deparei, surpresa, com a dificuldade de entendimento de alguns termos e me vi subitamente pressionada a interromper a leitura e procurá-los no dicionário, coisa que em momento algum me ocorrera fazer quando os li pela primeira vez. Envelhecimento mental ou falta de hábito? Não sei dizer.

Sempre que penso nessa contraposição de discursos “ultrapassados” e “modernos”, lembro também da linguagem empolada dos políticos de antigamente, que, paradoxalmente, parecia provocar mais admiração que irritação no meio do povo. Há algum tempo, encontrei uma “explicação” bastante convincente para esse fenômeno numa frase de Nietzsche: “Aquele que se sabe profundo esforça-se para ser claro. Aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforça-se por ser obscuro, porque a multidão acredita ser profundo tudo aquilo de que não pode ver o fundo”.

Contrastada com a penúria vocabular de nossos atuais mandatários, aplaudida por 10 entre 10 de seus fanáticos apoiadores como sinônimo de “espontaneidade” e do modo do povo falar, eivada de cacoetes, gírias e palavrões, é realmente de se pensar se não valeria a pena instituir a obrigação de adoção da norma culta para a comunicação de todos os candidatos a cargos públicos. Pouco tempo atrás, abordei meu espanto com a utilização compulsiva da palavra “canalha” pelo atual clã presidencial para se referir a todo e qualquer opositor ou antípoda moral. Registrei na ocasião todos os significados apontados no dicionário: desonesto, mau caráter, desprezível, vil, velhaco, sem valor, ordinário, infame, abjeto, cafajeste, indigno, ignóbil, mesquinho, miserável. Para minha perplexidade, o presidente voltou a se valer dela na manifestação golpista do 7 de Setembro, na tentativa de desqualificar moralmente um ministro do STF. E, menos de 48 horas depois, pasmo ainda maior: ao se “retratar” através de uma carta à nação pretensamente redigida por ele, lá estava registrado seu argumento de “nunca ter tido a intenção de agredir quaisquer dos poderes”. Se isso não é intenção de atacar a honra alheia da forma mais vil possível, me pergunto o que seria.

Seja como for, descobri semana passada que não é só uma questão de precisão a necessidade de utilização de uma linguagem mais diversificada e articulada gramaticalmente. Tropecei sem querer num texto que explica de forma definitiva a importância da linguagem para o desenvolvimento do pensamento crítico, escrito por um professor de gestão francês, chamado Christophe Clavé. Em seu texto, ele levanta hipóteses para justificar porque o QI médio da população mundial vem decrescendo nos últimos 20 anos. Separei alguns trechos mais emblemáticos do seu raciocínio:

“Pode haver muitas causas para esse fenômeno. Uma delas pode ser o empobrecimento da linguagem….não é apenas a redução do vocabulário utilizado, mas também as sutilezas linguísticas que permitem elaborar e formular pensamentos complexos. O desaparecimento gradual dos tempos verbais (subjuntivo, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento: incapaz de projeções no tempo.

 A simplificação dos tutoriais, o desaparecimento de letras maiúsculas e da pontuação são exemplos de “golpes mortais” na precisão e variedade de expressão….Menos palavras e menos verbos conjugados significam menos capacidade de expressar emoções e menos possibilidades de processar um pensamento. Estudos têm mostrado que parte da violência nas esferas pública e privada decorre diretamente da incapacidade de descrever as emoções em palavras. Sem palavras para construir um argumento, o pensamento complexo torna-se impossível.

 Se não houver pensamento, não há pensamento crítico. E não há pensamento sem palavras. Como construir um pensamento hipotético-dedutivo sem o condicional? Como pensar o futuro sem uma conjugação com o futuro? Como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de elementos no tempo, passado ou futuro, e sua duração relativa, sem uma linguagem que distinga entre o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que poderia ser e o que será depois do que pode ter acontecido…?”.

 O texto termina com um apelo comovente aos pais e professores para que ensinem as crianças e os jovens a praticarem o idioma em suas mais diversas formas, “principalmente se for complicado”. E, mais uma vez, ele explica com brilhantismo os motivos:

“…porque, nesse esforço, existe liberdade…Não há liberdade sem necessidade. Não há beleza sem o pensamento da beleza”.

 Lição aprendida, é imprescindível que analisemos com mais atenção e cuidado os argumentos apresentados nos debates para a campanha eleitoral de 2022, descartando em definitivo as desnecessárias injúrias “no calor do momento”.

Decididamente, não tem como perder a cabeça quem nunca a teve.

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Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

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