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Crise civilizatória e mudança paradigmática. Por Idalvo Toscano

… Que fazer quando se entende que o que se alega ser o caminho para sair de uma crise de proporção catastrófica, não passa de uma cruel mentira do capital e seus prepostos, equivalente às tantas limpezas étnicas que assistimos ao longo do processo civilizatório?…

Carpe Diem: Para onde irei?

Dois conceitos inspirados em Hannah Arendt (“A condição humana”) e Yuval N. Harari (Homo Sapiens) emolduram nossas reflexões: APETRECHOS e ARTEFATOS SOCIAIS.

O primeiro, vem do homem laborans e sua ação em fazer o mundo como ele é hoje. O segundo, legitima esta atuação e constrói todo o arcabouço que sustenta a mítica das relações dos homens entre si e com o próprio mundo.

Bons exemplos seriam os bancos e as leis e práticas que regulam suas atividades que nem de longe permanecem as mesmas daquele considerado como o primeiro banco moderno: Banco di San Giorgio, criado em 1406, em Gênova, Itália. Do mesmo modo, a regulamentação das atividades deste eram lassas se comparadas às atuais, mas eram consistentes com as necessidades da época quando, então, a cada nova crise as partes envolvidas se reorganizavam para editar e validar novas práticas.

Esta dinâmica pode ser observada para qualquer apetrecho e, por consequência, traz novos artefatos civilizatórios que legitimam um modo de funcionamento distinto e consentâneo com a prática social em vigor: atualmente a lei não subordina a mulher ao homem e, assim, a sórdida tese do feminicídio “em legítima defesa da honra” está sepultada. Isto se deu, todavia, após uma enormidade de tempo que nosso olhar de hoje julga inconcebível.

Cabe-nos uma linha sobre nossa visão do “deslocar-se da carruagem civilizatória”, bebida na fonte marxiana: a superestrutura político-jurídica se movimenta para legitimar a subestrutura econômica, porém o faz a seu tempo e lugar. Mesmos as revoluções do século XX não registram mudanças abruptas e contínuas que permitissem equalizar as coisas do mundo com o nosso desejo e imaginação. As mudanças, assim, obedecem a um borbulhar descontinuo, uma ruptura com antigos artefatos e a construção de novos em momentos distintos.

Estas reflexões brotam do desafio imposto pelo pensamento convencional (mainstream): a fome e a abundância que se combinam, sempre com prevalência da primeira, representam o produto da evolução humana nas diversas sociedades e são intransponíveis nos marcos civilizatórios atuais.

Invocam-se processos históricos que fundamentariam este estado de coisa. Todavia, no plano ético e moral, é inconcebível aceitar o que vemos a cada dia: catadores de comida no lixo, recém-nascido alimentado com água e amido de milho, ossos descarnados vendidos como alimento, levas de famélicos sem emprego etc., situação violentamente agravada pela pandemia. Tampouco é honesto o argumento de que “se vivia pior na Idade Média” e, por isso, o capitalismo “melhorou muito a vida das pessoas”, uma afirmação cínica que não se pode aceitar sem considerações.

Entretanto, se é verdadeiro que as sociedades atuais sofreram decisivas intervenções humanas (criação de apetrechos), não é menos verdadeiro que o surgimento de “efeitos colaterais” que, somente recentemente vêm sendo mensuráveis, representam uma catástrofe inimaginável sobre a vida e – pasmem – não tem viés de classe: atingem a BIOSFERA de forma indistinta!

Conforme a Earth Overshoot Day (https://www.overshootday.org), o dia da sobrecarga do planeta deu-se em 29 de julho, data em que a terra perdeu a capacidade de regenerar seus recursos naturais. Com isso, torna-se improvável, se nada for feito para corrigir os efeitos predatórios, garantir a produção e reprodução da vida no planeta.

A democracia – esta longínqua miragem civilizatória – desumaniza-se e o império das finanças (do dinheiro enfim, este nada obscuro objeto de desejo), se consolida tal qual o rei Midas: transforma tudo que toca em ouro, inclusive a água e comida. Assim, corre o risco de morrer sem poder comer. Este parece ser o destino do capitalismo: exaurir-se pela ânsia de lucros!

A fabulação que se cria em torno da cruel realidade de fome e miséria, bem como os mecanismos de funcionamento institucional do capitalismo (artefatos), é um delírio mortal para a vida no planeta.

Que fazer quando se entende que o que se alega ser o caminho para sair de uma crise de proporção catastrófica, não passa de uma cruel mentira do capital e seus prepostos, equivalente às tantas limpezas étnicas que assistimos ao longo do processo civilizatório?

Exemplo inconfundível: a “guerra das vacinas” que não ficou restrita a países governados por perversos genocidas, mas transparece limpidamente nos processos de produção e se refletem nos lucros das empresas produtoras. Segundo o site DW (https://www.dw.com/pt-br/), agência pública alemã de radiodifusão e notícias, o lucro de três farmacêuticas – Pfizer, Biontech e Moderna – é de US$65 mil por minuto, ou seja, US$24 milhões por dia. A cadeia de interesses que leva milhares à morte é uma planilha onde o acesso aos imunizantes segue a lógica impiedosa do “livre mercado. Contingenciados por estes interesses, governos resistem em adotar o caminho mais adequado e já consagrado no caso de emergência sanitária global: a quebra das patentes. As consequências sobre a saúde dos povos são visíveis: os países pobres têm apenas 2% de suas populações vacinadas.

No Brasil, um neoliberalismo perverso e genocida coloca como condição sine qua non ao enfrentamento da crise econômica e sanitária, o equilíbrio das contas públicas, em um repetir de fórmulas de manuais de economia obsoletos.

Na verdade, não é bem assim que as coisas se passam. Os interesses preponderantes da banca criam a fábula do orçamento equilibrado e do teto de gastos, enquanto mais de 700 mil pessoas falecem e milhões contraem a Covid19 e cerca de 80 milhões passam fome. Aos financistas – especuladores – interessa sobremaneira um crescente endividamento em que a autoridade monetária do país joga papel preponderante ao elevar desnecessariamente os juros básicos para uma economia onde falta a demanda por escassez de renda.

Trata-se, assim, de transferir recursos para o piso inferior da sociedade e, destarte, matar a fome abertamente visível.

Igualmente, um programa de investimento em infraestrutura financiando pela emissão primária de moeda, apresenta-se como um caminho decisivo na superação dos atuais entraves socioeconômicos e sanitários.

Há barreiras na implementação destes novos apetrechos. Os atuais artefatos existentes apontam para uma determinada tessitura de forças econômicas e políticas. Entretanto, são passíveis novas arquiteturas mais compatíveis com um momento de tamanha gravidade humanitária.

Este Programa compreenderia, também, Educação e Saúde, bem como as adequações e investimentos em servidores da área. Adicione-se um necessário e URGENTE programa de renda cidadã vitalícia de até 1 (hum) salário mínimo mensal.

A esta proposta serão apresentadas uma miríade de objeções e argumentos contrários, mas ficamos como nossa convicção de que momentos de crise requerem soluções “fora das certezas constituídas”: temos que mudar nossos APETRECHOS e construir novos ARTEFATOS para viabilizar uma economia rica em alternativas e próspera em equidade.

Há saídas.

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Idalvo Toscano (idalvo) — Perfil | Pinterest Idalvo ToscanoEconomista, com formação em Planejamento Urbano pela FGV/SP. Funcionário público aposentado do Banco Central do Brasil.

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2 thoughts on “Crise civilizatória e mudança paradigmática. Por Idalvo Toscano

  1. Uma leitura que muitos deveriam fazer. Impressionante sua analise e um pouco assustadora para quem se preocupa com a situação da siciedade atual,as que e leigo na questão econômica. Vc, no final, aponta para uma saída otimista. Será mesmo possivel? Parabéns!

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