das intenções

Das intenções. Por Myrthes Suplicy Vieira

das intenções

Um fenômeno relativamente recente espalha-se pelo mundo como praga. Filho dileto do pensamento dicotômico, da polarização sem sentido, da mania de enxergar o mundo em preto e branco e de raciocinar sempre em espelho, ele ganhou em inglês o título de ‘whataboutism’.

O nome pode ser complicado de entender mas é uma das características mais marcantes da bipolaridade da cultura brasileira. ‘What about…?’ pode ser traduzido como ‘E quanto a…?’. Refere-se a uma tática comum de conversação em que, ao invés de responder diretamente a uma crítica, assumindo-a como pertinente e legitimando-a (ou não) na resposta, opta-se por desviar do assunto em pauta e focar na contracrítica à isenção (ou ao caráter) de quem levantou a discussão pela primeira vez. É um jeito matreiro de demonstrar que a crítica está por princípio invalidada pelo simples fato de que o outro lado também não pode ser considerado totalmente isento de miopia, viés ideológico, preconceito, parcialidade, culpa ou responsabilidade.

Se você ainda não ligou o nome à situação, é fácil lembrar como isso acontece entre nós. Alguém critica alguma medida controversa da administração Bolsonaro e lá vem a indefectível pergunta: “E o PT? E o Lula?”. E o debate se arrasta interminavelmente em torno de quem teria feito mais mal ao país, a corrupção das esquerdas ou a contínua destruição do patrimônio natural e das instituições democráticas brasileiras promovida pela extrema-direita. Embora fosse possível esperar que levar em consideração os argumentos dos dois lados da disputa implicasse maior transparência ou racionalidade na abordagem, não é isso o que acontece: ao contrário, o maniqueísmo só se aprofunda e interdita a manifestação de neutralidade, acusando-a de “ingenuidade”, analfabetismo político ou alienação. A ninguém ocorre perguntar: se os dois lados são perniciosos, como escapar da armadilha da polarização e promover a emergência de uma terceira via responsável, como deixar de votar em nomes e passar a pensar em termos de projetos de futuro para o país ou, no limite, como desapegar da ideia de que só um salvador da pátria pode nos tirar do atoleiro em que nos metemos.

Os exemplos abundam, cada um deve ter seu preferido no noticiário nacional ou internacional. Agora, diante da invasão da Ucrânia, o whataboutism ressurge poderoso, reeditando o patrulhamento ideológico dos tempos da ditadura militar, como numa espécie de indagação irritada sobre o ‘lugar de fala’ de cada parte envolvida nas críticas. Só que, desta vez, ele vem ineditamente mancomunado com outro mecanismo psicológico perverso que passei a chamar de ‘gaslighting’ geopolítico. Ou seja, toda vez que alguém posta um elogio à resiliência dos ucranianos e à coragem e espírito patriótico de Zelenski – e as mulheres são maioria, nesse sentido – muitos analistas deixam no ar a suspeita de que se está “romantizando” a guerra e vendo o líder ucraniano como uma espécie de Príncipe Valente que veio salvar a donzela fragilizada e acuada.

Verdadeiros batalhões – tanto de direita quanto de esquerda – se mobilizam para demonstrar que não há inocentes no conflito, que a Ucrânia está pagando o preço de cutucar irresponsavelmente onça com vara curta, que Zelenski teve várias oportunidades de negociação com a Rússia antes da guerra e as descartou, que é um ‘inocente útil’ manipulado pelo imperialismo dos EUA e pelo expansionismo da Otan – lembrando que ambos têm as mãos sujas de sangue inocente e, portanto, não têm moral para acusar Putin de terrorismo de Estado. Todos sempre se pretendendo especialistas em conflitos no leste europeu, agregando “informações privilegiadas” obtidas em jornais e revistas especializados ou alegando possuírem contato com fontes mais confiáveis entre os ‘insiders’.

No Brasil, ao whataboutism vieram ainda se juntar duas outras bestas apocalípticas: a defesa irracional da liberdade de expressão sem limites (mesmo que ela signifique o direito de injuriar terceiros e atacar a democracia) e da supremacia das liberdades individuais em desfavor dos interesses coletivos. Não é só na política que usamos e abusamos desse tipo de cacoete intelectual. Desde o direito ao aborto, passando pela inaudita violência contra mulheres, gays e trans, as cotas raciais nas universidades, o viés do judiciário que não enxerga o abismo de desigualdade social, até a substituição da adoção de bebês humanos abandonados por filhos de 4 patas, nos damos cotidianamente ao luxo de manifestar desapreço pela conciliação de diferentes princípios éticos e visões de mundo.

Diferentemente do que acontece com os animais, o discurso humano é sujeito a um sem-número de mal-entendidos. Como dizia muito apropriadamente o psicanalista Lacan, você pode saber o que disse mas nunca o que o outro escutou. A escolha das palavras, o tom de voz, a postura corporal e o gestual que empregamos ao defendermos uma ideia são todos dependentes da interpretação de seus significados. Isso nos remete inexoravelmente ao reino das intenções.

E o terreno das intenções é pantanoso e impenetrável por princípio, já que só se pode lidar com suposições. Questionar-se a respeito das reais intenções de quem justifica a guerra levantando bandeiras como ‘desnazificação’ da Ucrânia ou a nobreza de intenções de quem defende a paz, suspeitando do alastramento da ‘russofobia’, só eleva o conflito a um novo patamar de tensão. O subtexto da guerra psicológica ora em curso agrava sobremaneira nossa já combalida consciência cidadã e certamente terá reflexos importantes sobre a próxima campanha eleitoral.

É de se esperar que assistamos em breve a um forte recrudescimento das teorias conspiratórias, a novos delírios persecutórios decorrentes do inesperado reagrupamento das forças que se diziam anteriormente “anticomunistas” e “patrióticas” e da triste ideia que as minorias devem se curvar diante da vontade da maioria.

Preferencialmente, sem nem tentar lutar pela abertura de novos espaços de conciliação.

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 Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

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