ILUSIONISMO

Ilusionismo. Por Alexandre Schwartsman

A redução de endividamento do governo se deve à inflação elevada, mas se precisamos disto, não há como se comprometer com a inflação na meta de maneira consistente.

ILUSIONISMO

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA INFOMONEY, EDIÇÃO DE 18 DE MAIO  DE 2022 

A boa notícia relativa às contas públicas é a redução do endividamento público no primeiro trimestre do ano: a dívida, medida como proporção do PIB, caiu para 78,5% em março contra 80,3% em janeiro. A má notícia é que a inflação alta continua desempenhando um papel central num drama em que lhe caberia, no máximo, figuração.

Isto sugere uma inconsistência crucial no arranjo fiscal corrente: se precisamos de inflação alta para pôr as contas em dia, não temos como reduzir a inflação de forma crível, portanto persistente.

A tabela abaixo, construída com dados do BC, resume parte da história.

Variação anual média da dívida bruta – % PIB

2007-13 2014-16 2017-19 2020 2021 2022*
Variação da dívida bruta (A) + (B) + (C) + (D) (0,6) 6,1 1,6 14,6 (8,3) (1,9)
(A) Dinâmica de dívida (1) + (2) + (3) + (4) (2,7) 5,6 3,5 13,4 (7,3) (0,8)
   (1) Resultado primário do Governo Geral (2,6) 1,6 1,4 9,6 (0,7) (0,6)
   (2) Juro real 1,8 2,8 3,2 0,8 (2,9) 0,0
         Juro nominal 5,8 7,0 6,0 4,6 5,8 2,0
         Inflação (4,0) (4,2) (2,9) (3,8) (8,6) (2,0)
   (3) Crescimento do PIB (2,1) 1,3 (1,1) 3,1 (4,1) (0,3)
   (4) Efeito cruzado inflação-PIB 0,2 (0,1) 0,0 (0,2) 0,4 0,0
(B) Ajuste cambial e paridades 0,0 0,4 0,3 1,8 0,7 (0,8)
(C) Reconhecimento de dívidas (-) privatização 0,1 0,1 0,1 (0,0) 0,1 0,0

(D) Outras operações

2,0 0,1 (2,3) (0,6) (1,8) (0,3)
* Jan-Mar/2022
Fonte: Autor com dados do BCB

Como se vê, no primeiro trimestre de 2022 a dívida pública encolheu cerca de 2% do PIB, mantendo a tendência observada desde o ano passado, quando a redução superou 8% do PIB. Parte relevante da redução se originou da apreciação do real ante ao dólar no período (linha B), dado que o governo ainda tem dívidas em moeda estrangeira (cerca de 7% da dívida no final do ano passado), cujo valor em reais fica menor quando a moeda nacional ganha terreno.

Como regra, contudo, não podemos contar com os movimentos da moeda para resolver o problema de endividamento. Da mesma forma que o real ganhou do dólar no primeiro trimestre, tem perdido no segundo.

A única forma de reduzir de forma persistente a relação dívida-PIB é por meio da chamada “dinâmica de dívida” (a linha A na tabela), resultante da interação entre o resultado primário do governo, o juro sobre a dívida pública e o crescimento do PIB.

De fato, o juro (descontada a inflação) empurra a razão dívida-PIB para cima; já o crescimento da economia tem efeito diametralmente oposto.

Isto dito, o efeito do juro real sobre o endividamento no período deixou de ser negativo, como foi no ano passado, refletindo, entre outras coisas, a elevação da Selic. A inflação, todavia, (o IPCA médio do período comparado ao observado no último trimestre de 2021, uma aproximação enquanto esperamos o resultado oficial do PIB) anulou o efeito do juro mais alto.

Já o efeito do crescimento do PIB, embora modesto, ajudou a reduzir a dívida.

Por fim, o resultado primário do governo geral (União, estados e municípios) também atuou neste sentido. Comparado ao mesmo período do ano passado, cerca de metade da melhora se deve a estados e municípios, enquanto a outra metade resulta do desempenho do governo federal.

A inspeção mais detalhada deste último, contudo, aponta para o efeito considerável da inflação elevada. No gráfico abaixo mostro a decomposição da variação das despesas federais medidas a preços de março de 2022, no caso as despesas recorrentes, isto é, sem “pedaladas”, bem despesas extraordinários, como, por exemplo, o auxílio de 2020 e 2021.

Fonte: Autor com dados do Tesouro Nacional e BNDES

Assim, embora os gastos medidos a preços constantes tenham caído bastante no passado (pouco mais de R$ 52 bilhões), a redução nos 12 meses terminados em março já é bem menor: R$ 17 bilhões.

Isto resulta de duas forças: a expansão dos gastos puxando a despesa real para cima em R$ 128 bilhões, enquanto a inflação “comeu” o equivalente a R$ 145 bilhões.

Caso a inflação tivesse ficado na meta, seu impacto sobre as despesas teria sido muito menor: R$ 56 bilhões. Numa primeira aproximação, a inflação acima da meta reduziu a despesa recorrente federal em quase R$ 90 bilhões. O gasto federal, medido a preços de março de 2022, teria crescido R$ 71 bilhões nos 12 meses até março, resultado bem diferente da queda observada de R$ 17 bilhões.

Ao invés, portanto, de registrar superávit de R$ 51 bilhões no primeiro trimestre, o governo federal amargaria déficit na casa de R$ 36 bilhões. Algo similar provavelmente se aplicaria a estados e municípios, embora não tenhamos ainda os dados que nos permitam aferir a intensidade deste fenômeno no caso dos governos subnacionais.

Se precisamos, portanto, de inflação alta para produzir saldos primários e reduzir a dívida pública, deve ficar claro que enfrentamos uma inconsistência séria no arranjo das contas públicas.

Não buscamos o equilíbrio das contas (aqui pensado como um nível de endividamento moderado e estável ao longo no tempo) por razões políticas ou estéticas, mas porque se trata de um requisito para manter a inflação também moderada e estável.

Se, com inflação baixa, a dívida crescer de forma descontrolada, a capacidade de o BC manter este estado de coisas fica comprometida, já que a taxa real de juros seria exagerada para estabilizar a dívida. Cedo ou tarde, o BC perderia o controle sobre a inflação.

O desafio, portanto, é equilibrar as contas com a inflação na meta, a prova dos nove quanto à sustentabilidade dos preços estáveis. Neste quesito, seguimos devendo e muito.

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* ALEXANDRE SCHWARTSMANDOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS

@alexschwartsman
aschwartsman@gmail.com

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