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Necrolatria. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão

 Necrolatria: O que um coração necrosado poderia fazer? 

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O que Marcelo Rebelo de Souza, um gentil-homem, emérito professor de Direito da Universidade de Lisboa, veio fazer por aqui, num momento desses?  Se for esperto, tem um plano de segurança, que o permite sair de mansinho pelos fundos da Esplanada dos Ministérios, carregando debaixo do braço a caixa de metal com o coração de D. Pedro I. Sobre o soberano, falecido há 180 anos, o imaginário popular atual transita por chacotas,  dignas de um Jô Soares, de um Millôr Fernandes ou de um Chico Anísio, se estivessem vivos.  

É de se lamentar que alguém o tenha convencido de que corações embalsamados podiam amenizar esse clima de ódio que está sendo vivido no Brasil, alimentado por  dois sujeitos, duas facções, por meio de uma campanha eleitoral revanchista, descomprometida com a Nação, e que se espalha pelo Brasil, contaminando a população.     

Incapazes de produzir um referencial retórico mais apurado esses políticos cunham, inconsequentemente, frases provocativamente lapidares, como: “Nós e eles”. Se é um chamamento revolucionário, não sei. Está mais para algo meio boquirroto, que emerge involuntariamente no meio de um discurso de improviso. Mas que, por aqui inspira enfrentamentos entre bufões opostos, centrados no tema da corrupção – Mensalão, Petrolão, Orçamento Reservado – dos quais são os principais protagonistas.  

Os dois não são os únicos candidatos. Existem, concorrendo à Presidência da República, outros como Tebet (PMDB) e Ciro Gomes (PDT), ambos com formações acadêmicas respeitáveis e experiências de gestão pública já testadas, posicionando-se como conciliadores de centro.

Mas a campanha eleitoral parece até aqui visivelmente  dividida, nas opções populares,  por esses  dois sujeitos revanchistas:  um, o atual Presidente,  afastado da carreira militar  por indisciplina; o outro, operário, já eleito anteriormente para o cargo, e que conduz falsos discursos, tentando acomodar ambiguamente  o modelo de corrupção que tomou conta do País na sua gestão presidencial. A disputa inspira o ódio e a violência.  No debate, na TV Bandeirantes, em frente à televisão, já havia um grupo de militantes ameaçando quem passava por ali.  

Por aqui, os dois candidatos tidos como líderes na campanha eleitoral, acabam de convocar seus eleitores para as comemorações de rua no dia 7 de setembro, data magna nacional, ou seja, cultuada por todos os brasileiros. Mas, não parece ser bem para festejar o bicentenário da Independência do Brasil, proclamada pelo jovem imperador D. Pedro I, do qual se tem aqui o coração, transferido de Portugal, temporariamente, conservado em formol. As duas facções políticas parecem querer usar o evento para medição de forças eleitorais.

É constrangedor, porque ecoa pelos ares ainda a declaração classista, divisionista e desafiante, feita , em campanha anterior, por um dos candidatos ressaltando  o “Nós e Eles”, distinguindo  aqueles que dão prioridade à identidade nacional, e os que, pateticamente, colocam acima desse civismo quase poético a ideia de uma “liberdade” ampla e irrestrita, acusando-se mutuamente de direita e de esquerda..      

Nas eleições brasileiras, a violência com método nunca foi descartada. Mas também não é como na Colômbia com candidatos sendo fuzilados em palanque, na frente de todo mundo. Por aqui essa violência sempre foi quase pontual, restrita a municípios isolados.

Mas faz lembrar a campanha de Collor de Melo, um esportista, lutador de karatê, tido como de direita, e que levava consigo para os comícios um grupo desses atletas de artes marciais, para resolver no braço as manifestações e provocações mais agressivas.

Quando Presidente da República, Dilma Rousseff, pouco afeita às liturgias cívicas nacionais, nas tradicionais comemorações do 7 de setembro, chegou a separar os espaços para as militâncias opostas, instalando na Esplanada dos Ministérios, um longo alambrado de madeira separando os manifestantes.  Projetava – não se sabe de onde tirara aquilo? – um enfrentamento entre grupos partidários opostos. A Presidente refletia ali sua visão de mundo legitimadora de uma divisão entre brasileiros, instigados com aquela estratégia a se odiarem politicamente.     

Pelas ameaças que estão sendo feitas nas entrevistas na mídia e nos discursos e atos públicos, a possibilidade de enfrentamentos, daquilo que foi classificado como “torcidas de futebol“, e não como militantes ideológicos ou partidários, não deve ser descartada.   Evoluiu-se muito, de alguns anos para cá. A campanha anterior chegou a ter até facada em candidato durante um comício público.  

 Parece que caminhamos para um enfrentamento, alimentado pelo o que George Orwell (1984) chamou de “duplipensamento“, aquela “dissonância cognitiva” capaz de abrigar, simultaneamente, na cabeça do cidadão,  duas crenças contraditórias, e fazê-lo acreditar em ambas…Como dizia Vandré:  “Pelas ruas marchando indecisos cordões/Ainda fazem da flor seu mais forte refrão/E acreditam nas flores vencendo o canhão” Que se cuide o Presidente de Portugal. Não vá em qualquer lugar, não saia acompanhado com qualquer um. 

 Bolsonaro está anunciando o desfile de 7 de setembro em Brasília, outro no Rio, e uma “motociata” em Copacabana. O PT convoca uma grande manifestação, no estilo, segundo anunciam-se entre militantes, similar à Rede da Legalidade montada por Leonel Brizola em 1964, e que reuniu uma milícia armada.

Portanto, senhor Presidente Rebelo, não acredite que as pessoas irão para essas manifestações de peito aberto e espírito cívico. contemplativo. 

Por mais que os propagandistas insistam nesse “marketing da necrolatria”, o já meio necrosado coração de D. Pedro I não vai ajudar em nada. O clima político é dos mais agressivos e, sobretudo, revanchista, alimentado pelo tema “corrupção”, embora envolva, por todos os cantos candidatos seus protagonistas retornando à cena do crime, depois de inocentados pela mais alta corte da moralidade nacional. Mas, pode crer, o “rombo” é grande. Nem o STF conseguiu dimensioná-lo. Que o diga o velho ministro Joaquim Barbosa, que, com dignidade, optou por cair fora. 

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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018

 E autor de Lanternas Flutuantes:

Português –   LANTERNA FLUTUANTES, habitando poeticamente o mundo
Alemão – Schwimmende-laternen-1508  (Ominia Scriptum, Alemanha)
Inglês – Floating Lanterns  
Polonês – Pływające latarnie  – poetycko zamieszkiwać świat  
Tailandês – Loi Kathong (ลอยกระทง) 

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1 thought on “Necrolatria. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão

  1. Vale lembrar que o “Nós e Eles” ou “Nós Contra Eles” teve início com o governo de Lula, não foi invenção de Bolsonaro.

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