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A fratura da confiança. Por Alexandre Henrique Santos

…A que ponto chegamos, leitora e leitor: há no país e entre todos nós uma fratura exposta da nossa confiança. Vivemos mais ariscos e distantes uns dos outros. E o Presidente anterior investiu pesado na ampliação desse fosso. Só a falta de empatia e de amor pelo Brasil podem justificar a criminosa indiferença diante das fotos das crianças yanomamis mortas, sim, pelo desmonte da FUNAI e pelo incentivo ao garimpo ilegal…

yanomaniconfiança - militares
situação das crianças yanomamis

“A confiança é tão difícil de criar quanto fácil de se perder.”

Adágio popular

O atual Ministro da Defesa, José Múcio, segundo os mais próximos, aquele com quem é impossível brigar, surpreendeu ao justificar de modo claro e direto a exoneração do general Júlio César de Arruda do comando do Exército: a confiança se quebrou. Bem, vamos tentar entender o porquê dessa “surpresa”.

Começo esclarecendo que o escaldado político é conhecido por dar nó em pingo d’água para evitar atritos com a turma dos fardados. Portanto, alguém perfeito para mediar a relação frequentemente tensa e submissa entre as instituições civis e o corporativismo castrense – este sempre disposto a fantasiar que nasceu para tutelar a República. Mas dessa vez o homem teve de cair na real; pois não conseguiu fazer Luís Inácio deglutir a insubordinação do comandante do Exército, amigo íntimo do ex-Presidente Jair e do seu vice.

Calma, leitora ou leitor, não se adiante com julgamentos. Proponho que observemos essa cena através das lentes da proxêmia. O que é isso? O termo foi criado em 1963 pelo antropólogo norte-americano Edward Hall para descrever o novo campo de estudo da linguística. Hoje aceito e respeitado ramo da semiótica, a proxêmia nos ajuda a entender o espaço e a organização interpessoais, suas liturgias e significados.

Métrica do Espaço Interpessoal

Pois então, nosso comportamento comunicativo nos delata sem necessidade de prêmios. Certamente as pessoas preferem não ter proximidade com quem não lhes demonstra empatia. E ao contrário, buscamos nos acercar de quem se mostra sensível às nossas peculiaridades. A partir dessa ululante obviedade podemos avançar para nuances mais complexas. A título de exemplo, vejamos o GSI/PR, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – órgão responsável por assistir direta e imediatamente ao chefe do Executivo no nevrálgico terreno da segurança. Seu espaço geográfico é tão aderente ao mandatário que apenas uma porta separa as duas salas de trabalho; e veio sendo chefiado pelo tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, o coronel Cid. O GSI, segundo jornalistas investigativos, passou a ser chamado na intimidade palaciana por um grotesco apelido por nós já conhecido: Gabinete do Ódio.

Após a vitória eleitoral da frente democrática, os militares apoiadores dos terroristas do 8 de janeiro trataram de sair dos holofotes. O próprio coronel Cid, que se tornou investigado no inquérito dos atos antidemocráticos, deixou o GSI e, como se diz, “caiu para cima”, foi promovido. É importante explicar a infeliz piada: já sob o governo Lula, Cid foi elogiado pelo então chefe do Exército, general Arruda, e premiado com o comando do 1º BAC – Batalhão de Ações de Comandos. Isto é, se de um lado o novo Presidente deixava de ter o militar bolsonarista-raiz a seu lado no Palácio do Planalto; por outro, passaria a tê-lo no comando da maior tropa do exército, em Goiânia, a dois passos de Brasília – algo assim com o petista começar a andar 24 horas por dia com a espada de Dâmocles sobre sua cabeça!

É certo que Múcio tentou baixar as tensões e esfriar os ânimos de uns e outros, mas não obteve sucesso; Arruda manteve a promoção do coronel. Lula não teve outra escolha e se viu obrigado a destituí-lo da chefia do Exército. Fez mais, agiu para impedir a promoção do ajudante-de-ordem e braço-direito do ex-presidente. Aliás, nos últimos dias Cid vem sendo chamado de “Queirós federal” – por controlar uma suposta “rachadinha planaltina” em benefício do antigo chefe; mas quiçá seja apenas calúnia difundida por esquerdistas.

Pronto, já podemos voltar ao campo da proxêmia e da confiança estraçalhada. Nos últimos meses temos ouvido à exaustão o repetido bordão de que as Forças Armadas são uma instituição permanente do Estado e não agentes de Governo. Ouvimos e reouvimos, dito pelas mais diversas bocas, que Exército, Marinha e Aeronáutica servem ao Povo Brasileiro e não a partidos políticos, grupos  econômicos e igrejas evangélicas.

Agora bem, ou assumimos a responsabilidade de termos permitido que a política contaminasse a caserna de forma escancarada, e lidamos com o erro de forma adulta ou não haverá suficiente dinheiro nos bancos para pagar a fatura da nossa covardia e prevaricação. Todos nós, civis e militares, ouvimos o ex-presidente Jair se referir às Forças Armadas como sendo sua propriedade particular. Há dezenas, centenas de vídeos e áudios disponíveis que comprovam a leniência da Sociedade Civil e das Forças Armadas para com essa explícita e inadmissível cooptação!

Vejamos: não foram os militares que inventaram os civis; foram os civis que inventaram os militares. E cabe à sociedade brasileira retomar com sobriedade e coragem o comando do seu próprio destino….civil. Do recruta ao general, somos nós, brasileiras e brasileiros, que pagamos os soldos dos fardados. Ou as Instituições da República defendem com bravura o que está lavrado em bom português na Constituição Federal ou teremos novas pandemias de estupidez coletiva, de gente ignorante e terrorista pregando golpe de Estado e Ditadura Militar. Essa prática nunca deu, não dá e jamais dará certo. Basta ter o mínimo conhecimento sobre História ou analisar os países do planeta controlados por militares.

A que ponto chegamos, leitora e leitor: há no país e entre todos nós uma fratura exposta da nossa confiança. Vivemos mais ariscos e distantes uns dos outros. E o Presidente anterior investiu pesado na ampliação desse fosso. Só a falta de empatia e de amor pelo Brasil podem justificar a criminosa indiferença diante das fotos das crianças yanomamis mortas, sim, pelo desmonte da FUNAI e pelo incentivo ao garimpo ilegal. São fotos que ganharam as primeiras páginas dos principais jornais do mundo e causaram indignação planetária.

Será impossível superar a fratura da nossa confiança sem promover a abertura e a transparência. É imprescindível tipificar as fake news como crime hediondo e inafiançável contra a humanidade; e, concomitantemente, combater os sigilos que encobrem corrupção, abuso de poder e prevaricação. Se chegar a existir, tal processo não será simples nem fácil e nem rápido. Exigirá que suportemos estoicamente muitas e variadas dores. Dores estas que, se não forem bem tratadas, se transformarão num longo sofrimento nacional!

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Foto: @catherinekrulik

*Alexandre Henrique Santos – Atua há mais de 30 anos na área do desenvolvimento humano como consultor, terapeuta e coach. Mora em Madri e realiza atendimentos e workshops presenciais e à distância. É meditante, vegano, ecologista. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes..

Acesse: www.quereres.com

Contato: kari1954kari@gmail.com

 

1 thought on “A fratura da confiança. Por Alexandre Henrique Santos

  1. Bolsonaro deixou claro em sua campanha eleitoral, em 2018 que o povo originário ( indios e quilombolas) estariam distantes de sua inclusão social, política e economica, em seu possível governo.
    Os Yanomamis têm seus anjos guardiões, espíritos confiáveis diferentes desses militares( funcionários públicos).

    Por tal razão foram socorridos a tempo, muito embora o espaço que divide a distância entre as urnas eleitorais e esse povo; sejam o significado e o significante: o objeto é a vida humana.
    Bolsonaro é um objeto ausente, que quebra a métrica do espaço destruindo símbolos através de sua influência mental.

    Você foi preciso, Alexandre, ao dizer que “Lula não conseguiu deglutir a insubordinação do general.”
    Mais uma vez a democracia se fez presente e o pesadelo deu lugar a normalidade.
    Parabéns pelo seu texto!

    Abraço democrático.
    Zenóbio Araújo.

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