limites

Praia de Salinas - PA

Além do limite azul. Por Antonio Contente

… Ao longo da jornada avistei à minha direita, no começo das dunas, algumas cabanas de palha, abandonadas. Mais à frente só areia, sob o derramar, o escorrer ilimitado das cintilações da densa manhã. Entrefecho os olhos, por causa do sol forte. Ando mais, e mais…

Penso que, nesta vida, encontramos, em muitas circunstâncias, com aquilo que chamaria de “ponto limite”. É uma espécie de fronteira, real, que, atravessada, nos leva ao incerto e não sabido. Acho que topei pela primeira vez com isso quando, menino, passei a frequentar as praias de Salinas, no litoral atlântico do Pará. Certa manhã, soltando os passos pelo areal imenso e deserto, beirando as ondas cheguei a um pedral. As rochas, não sei se saídas do mar ou se para ele indo após brotar no chão seco, me pareceram dizer que ali terminava a caminhada; ir além poderia levar ao desconhecido. Onde, afinal, moram inúmeras possibilidades. Paradoxais, é certo. Por abrir perspectivas para os sonhos; ou pesadelos.

Lembro bem que na primeira visita ao pedral imediatamente pintou o desejo de saber o que existia à frente dele. Inicialmente imaginei que, no entorno de outras dunas, poderia estar uma enseada de águas claras, com a floresta chegando perto da areia. Ao redor, pássaros; e até alguns bichos de pelo, como nos desenhos do Walt Disney d’outrora. Nos quais o inesquecível Bambi vagava em cenários de córregos cristalinos com flores nas margens. Sobre as quais voavam borboletas azuis.

Assim foi que durante o primeiro período da minha mocidade, voltando ao local em quase todas as férias, o primeiro espaço que buscava era sempre o pedral. Com a intenção, nunca realizada: atravessá-lo! Para saber o que existia além.

Passou-se o tempo, fui estudar em outros lugares, em outros lugares fiquei para trabalhar e morar, mas a velha praia amazônica, com seu bloco de pedras, nunca deixou de perpassar em meu coração e meus pensamentos. Exatamente naquelas horas em que o bom já vivido se transforma na boia salvadora ao deslizar em eventuais turbulentas navegações. Quantas vezes, em paragens inusitadas, em países estranhos, me surpreendi a perguntar: “O que, afinal, existe à frente daquele pedral”?

Como se isso fosse um filme, façamos um corte para alguns meses atrás, final do ano passado quando, após bom tempo, voltei à velha praia da meninice. De cara, na verdade, me recusei, nos tantos bares que construíram entre a areia e as dunas, perguntar se o velho pedral ainda estava lá. A clara sensação que me possuía era uma espécie de pudor. Tomado por aquilo, entrei na antiga barraca do Sajuba, que é um homem mais ou menos da minha idade, e pedi uma cerveja. De repente aponto numa certa direção ao amigo, como se ali estivesse pela primeira vez:

         — E para lá?

         — Para lá o que? – Ele me encara.

         — Para ali – indico o rumo do meu encanto e seu absolutamente eterno mistério.

Entendendo que desejava alguma informação sobre o tempo, Sajuba murmura: “Bom, pela cor das nuvens, na boca da noite vai chover”.

Vejam como, de repente, se torna difícil solucionar uma curiosidade. Poderia, simplesmente, indagar, direta e concisamente, sobre o pedral; que, na verdade, nem ficava perto dali. Mas a pergunta, pronta na garganta (“O que há, afinal, além dele”?), simplesmente morreu.

Inquieto, peguei uma banqueta, a cerveja e fui me postar, sozinho, sob um cajueiro ao pé do areal. Com o olhar fixo na direção que em tantos e tantos anos nunca deixei de percorrer nas andanças interiores, queria sentir, no ar, algum sinal, algum aroma, algum brilho que respondesse o que pulsava dentro de mim.

Passa-se quase uma hora. Subitamente, fincando a garrafa vazia na areia fofa, levantei e tomei o rumo do pedral. Caminhei com os passos firmes de quem conhecia cada palmo do chão.

Ao longo da jornada avistei à minha direita, no começo das dunas, algumas cabanas de palha, abandonadas. Mais à frente só areia, sob o derramar, o escorrer ilimitado das cintilações da densa manhã. Entrefecho os olhos, por causa do sol forte. Ando mais, e mais. Até que, de repente, avisto o “lugar limite”. Apresso-me para, junto das pedras, nos laguinhos formados com a maré baixa, avistar peixinhos e pequenos caranguejos, muito brancos. Por fim, coloco os pés sobre uma das rochas.

A força de certos mistérios está na precisão com que alimentam nossos encantamentos. Animado, cheguei a subir para, em muitos e muitos anos atravessar, pela primeira vez, a linha. No que ia descer para o outro lado, porém, estanco. Uma gaivota, em voo rasante que quase tocou minha cabeça, me fez parar. E tive certeza que recebera um aviso, não poderia ir em frente.

 Tornando, sentei numa das pedras do meu antigo lado de sempre, e conclui que o que existe depois, afinal, está solidamente implantado dentro de mim, em variações e formas. Levanto e ando, quase correndo, de volta.  Certo de que se encontrasse, além do limite azul, um loteamento já com prédios, casas, farmácia, supermercado, carros por todo lado etc, veria destruídos alguns dos meus mais lindos sonhos. E também, com certeza, talvez a última das minhas mais ternas ilusões.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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