Milei e o princípio da realidade. Por Fernando Gabeira
Diante de um processo histórico que superou barreiras, levou a uma coexistência e a uma cooperação entre Brasil e Argentina, Milei é apenas uma pedra no caminho.
(ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S. PAULO, E NO SITE DO AUTOR,www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 24 DE NOVEMBRO DE 2023)
Tudo nos une, nada nos separa. O autor dessa frase é um presidente argentino que se tornou nome de uma praça na Tijuca, Rio de Janeiro: Sáenz Peña.
Talvez tenha exagerado, pois sempre houve um ou outro problema entre Brasil e Argentina, apesar de a tendência histórica apontar para a cooperação.
É difícil de prever o que acontecerá exatamente com a eleição de Javier Milei. Um homem que se inspira no diálogo com o espírito de um cachorro morto, através de um médium, é irredutível às previsões.
Mas a História pode nos dar indicações de que nada de muito importante vai acontecer. Os dois países já superaram questões muito mais delicadas do que o mau humor ocasional de um presidente.
Não é preciso ir muito longe. Bolsonaro não falava com Alberto Fernández e pouco se importava com o Mercosul. Bolsonaro passou e as relações Brasil-Argentina viveram um novo momento – o próprio Mercosul retomou sua importância.
Já houve estresse muito maior, superado na história comum. Houve questões territoriais em torno das Missões, e o tema teve de ser arbitrado pelo presidente do EUA, Grover Cleveland, a favor do Brasil.
No século 20, um dos problemas que Brasil e Argentina viveram foi a construção da Usina de Itaipu. A Argentina achava que era uma grande intervenção num rio compartilhado e queria o direito de ser consultada. Chegou a levar esse tema à Conferência do Meio Ambiente em Estocolmo, em 1972.
A questão nuclear, que costuma dividir países vizinhos e desconfiados entre si, não o fez com Brasil e Argentina. Os dois se recusaram a assinar o tratado de não proliferação. Sentiam-se discriminados pelos países mais poderosos e tinham dificuldades de obter tecnologia mesmo para fins pacíficos. O entendimento acabou se prolongando no momento em que a Argentina anunciou ao Brasil que havia conseguido enriquecer urânio. Isso foi no início da década de 1980. Já em 1985, o entendimento era tão sólido que Sarney e Alfonsín assinaram um tratado na região de Foz do Iguaçu e, a partir daí, abriu-se um processo de cooperação no campo nuclear.
…Uma vez, viajando pelo Rio Grande do Sul, reclamei das estradas e alguém me disse: “Não consertam pois querem dificultar uma possível invasão argentina”. Não sei se a tese é verdadeira, mas a burrice faz parte de um enfoque de rivalidade.
Brasil e Argentina não só estavam longe da guerra, mas viviam os primeiros anos de retomada da democracia. Não havia apenas distensão mundial, mas também um processo de globalização em curso e grandes acordos regionais. Estavam dados os fundamentos para o Mercosul.
A superação de qualquer desconfiança bélica é algo essencial. Uma vez, viajando pelo Rio Grande do Sul, reclamei das estradas e alguém me disse: “Não consertam pois querem dificultar uma possível invasão argentina”. Não sei se a tese é verdadeira, mas a burrice faz parte de um enfoque de rivalidade.
Diante de todo este processo histórico que superou barreiras, levou a uma coexistência e, finalmente, a uma cooperação, Milei é apenas uma pedra no caminho.
Ele falou mal do Brasil, da China e do papa. Mas isso significa, em relação aos países, algum abalo nas relações comerciais?
De novo, a História pode ser uma indicação. Durante a ditadura militar, os generais diziam que eram a vanguarda da luta continental contra o comunismo. No entanto, cerca de 80% da exportação de cereais argentinos destinavam-se à então União Soviética.
Milei diz que não negocia com a China. Os chineses emitiram uma nota saudando sua vitória e abrindo as portas para a cooperação. Se ele não compra produtos chineses, tudo bem. Basta buscá-los numa loja de mercadorias americanas ou de qualquer outra nacionalidade. Mas a economia argentina não pode dispensar as relações comerciais com a China e com o Brasil.
A alternativa que ele apresenta, EUA e Israel, não supriria essas lacunas no campo das transações comerciais. Ele é crítico de Joe Biden e deve observar que os EUA negociam com a China. Israel, por seu turno, está envolvido numa guerra contra o Hamas que consome grande parte de sua energia.
Não chego a concordar integralmente com um colunista argentino que disse “com a vitória de Massa, não passa nada; com a vitória de Milei, também não”. Massa representava a continuidade. Milei terá de conquistar o Congresso e, em alguns casos, convencer a Suprema Corte.
Milei terá, certamente, um repertório de surpresas. É arriscado dizer não passa nada. No entanto, conhecemos o roteiro de Bolsonaro no Brasil. Ele conquistou o Congresso com o orçamento secreto. Milei teria esse caminho e, se o tiver, haverá recursos para a conquista? Muitos movimentos de Bolsonaro morreram no Supremo Tribunal Federal, sobretudo os que dizem respeito à pandemia.
Todas essas observações não excluem acontecimentos pitorescos, pequenas loucuras que devem animar o noticiário cotidiano. Mas o movimento histórico de integração e o crescimento da amizade entre Brasil e Argentina não dependem diretamente da amizade de seus presidentes.
O momento é de excitação, mas o curso geral da história é de uma busca serena de saídas para tantos problemas: os do Brasil, apesar de sua relativa prosperidade, e os da Argentina, com seu longo inferno astral na economia.
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Milei ainda tem como desculpa os efeitos dos eflúvios do laquê que utiliza (que, aliais, quero saber onde comprar), mas bozo tem qual desculpa? Falta de vergonha na cara não vale.