Distâncias

Distâncias. Por Antonio Contente

Distâncias… o velho gaiola, perene dentro de mim, que, em última instância, conduz aos lindos caminhos que me ensinou a achar. Com paradas nos trapiches onde o cheiro das sacas de semente de cacau era a certeza de que o mundo se movia…

Imagens animadas - Enfeites - Veículos - Barcos e cia.

         Sim, amigos, é fantástico você, ao amanhecer, abrir a janela e dar de cara, bem diante do seu nariz, com a distância. Num primeiro plano árvores e chão relvado. À frente, pura e simplesmente a distância, horizonte feito de azul e água, água de rio, deste Amazonas imenso em cuja foz, dependendo da circunstância, você não avista o outro lado. A distância é campo fértil para a plantação de sonhos. Por viver ou já vividos, como os dos súbitos navios da infância que de repente emergem, barcos de cascos de ferro pintados de branco, convés de madeira tomado pelo cheiro adocicado do vapor que vinha das máquinas e ficou para sempre. Retornando agora nesta manhã de domingo, presente das brisas que chegam do Mundo do Nunca Mais para dizer o quanto foi bom terem se criado no Mundo do Não Esquecer.

         “Almerim” era um navio-gaiola de proa alta, feito em Southampton, Inglaterra, para singrar as águas da Amazônia Profunda. Pela distância hoje oferecida aos meus olhos certamente passou muitas vezes. Íntimo de rasgar líquidas superfícies nos tempos férteis em que no fundo dos rios havia só peixes, nas florestas das margens só pássaros, bichos e árvores, com o céu cortado apenas pelas estrelas cadentes às quais se faziam pedidos que às vezes até eram atendidos.

         Os navios das infâncias das pessoas que, como eu, nasceram na Amazônia Profunda, navegam, pelo menos dentro de nós, eternamente. Na maioria das vezes apenas vagam em nossos rios interiores sem dar sinais. De repente, quando o paradoxalmente íntimo apelo da distância de um horizonte fluvial despenca sobre nós, deixa que escape o seu apito de tom quase rouco, posto no ar para comunicar aos caminhos que eles devem se abrir para o rasgar da proa de ferro e magias.

         “Almerim” foi o primeiro navio, da primeira viagem, da primeira expectativa, e, certamente, da primeira descoberta. De que o mundo, afinal, era navegável, de que a escola nos concedia os meses de férias para que sacássemos que as manhãs poderiam ser várias quando não infinitas.  Por se prolongarem além das quatro paredes da sala de aula ou da dimensão restrita do recreio.

         Ah, como foi bom descobrir que, depois de um “Almerim” a cortar os reflexos da floresta na superfície do rio, nunca mais poderia prescindir dele. Em que águas a partir daquela primeira viagem navegou nem sei, ou, talvez, até saiba. Mas, contar, quem há de?

         Assim é, amigos, que poder abrir nossa janela ao abraço da distância resulta na confirmação — “Almerim” de fato é eterno. E, se não sabia, agora sei que ainda posso nele embarcar como em outros tempos. Pois é o velho gaiola, perene dentro de mim, que, em última instância, conduz aos lindos caminhos que me ensinou a achar. Com paradas nos trapiches onde o cheiro das sacas de semente de cacau era a certeza de que o mundo se movia. O trapiche em si acabava por ser a ponte a conduzir no rumo do impossível, porém esperado como a possibilidade de promessas. Que precisavam passar pelo súbito navegar, noites cheias de ventos na Baia do Arrozal, quando a água espirrava pelo convés como um pó de encantos, nunca de medos. Madrugadas de ventos e de estrelas. Ondas como de mar batendo na proa alta. Canto, amigos, canto da natureza em movimento, plano para voos de aves noturnas pairando sobre a silhueta das margens. Aves reais que nunca existiram, e imaginárias com o ruflar no espanto dos nossos olhos, no descompasso dos nossos corações.

       Nesta manhã em que me encontro num ilhota no Delta do Rio Amazonas, me renasce, afinal, a grande certeza de que faz tempo que desembarquei da vinda. Mas tenho bilhete comprado para a viagem de volta.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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1 thought on “Distâncias. Por Antonio Contente

  1. Meu querido amigo Antonio Contente, não lembro se fui até o Delta do Rio Amazonas. Mas com teus textos sempre me vejo por lá e com as asas da imaginação, voaremos de volta para os lugares onde o coração encontra sua verdadeira morada. Obrigada por mais uma linda poesia.
    Beijos e um final de ano maravilhoso com muita saúde, amor e paz.

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