VIDA E MORTE

A vida e a morte na ilha. Por Antonio Contente

… pensei nisso ao estabelecer diálogo com uma senhora, de alguma idade, que desceu de um barco dos típicos que correm os rios da Amazônia. A ancoragem aconteceu no meu pequeno trapiche de madeira, e a passageira veio a mim, na porta da choupana que me abriga. Deu bom dia e olhou nos meus óculos. Chorava…

VIDA E MORTE NA ILHA

         Ora, amigos, quem imagina que numa pequena ilha no Delta do Rio Amazonas que abriga apenas dois moradores não acontece quase nada, cai em ledo engano. Vejam que ontem vivi aqui, de onde ora escrevo, acontecimentos tão estranhos a ponto de me ver remetido a um episódio inscrito na biografia de François-Marie Arouet, o formidável Voltaire que tanto brilhou na França no século XVIII e, certamente, brilha até hoje. O que aconteceu foi que quando o famoso autor de “Cândido” morreu, aos 84 anos, nenhum cemitério da capital francesa quis aceitar o seu corpo. Naturalmente que pelas posições iconoclastas que o escritor derramou, à época, sobre tudo e sobre todos. Pois bem, pensei nisso ao estabelecer diálogo com uma senhora, de alguma idade, que desceu de um barco dos típicos que correm os rios da Amazônia. A ancoragem aconteceu no meu pequeno trapiche de madeira, e a passageira veio a mim, na porta da choupana que me abriga. Deu bom dia e olhou nos meus óculos. Chorava, ao dizer:

                   — Queria que o senhor deixasse eu enterrar o corpo do meu marido no seu cemitério.

                   Tivesse levado um murro no peito e não me assustaria tanto.

                   — Meu cemitério? – Indaguei – Sou proprietário de um cemitério, minha senhora?

                   — Sim, fica ali na parte da ilha que dá para a Baia do Sol.

                   Bom, aí é que entra a lembrança de Voltaire a que me referi antes. Pois, mesmo admitindo que pudesse possuir um cemitério de que nunca ouvira falar apesar de ter esta propriedade há quase trinta anos, passei a pensar em porque a senhora queria enterrar o falecido lá. Perguntei se onde ela morava não havia necrópole. Tive a informação que sim, e mais: o último desejo do morto foi ser enterrado nesta ilha junto com seus pais, sepultados aqui há mais de 60 anos quando eram proprietários deste pedaço. Claro que imediatamente salientei que ela poderia trazer o morto e que não haveria obstáculo nenhum. Assim o féretro, com várias pessoas carregando o caixão, atravessou o meu pomar. O cortejo, rapidamente, sumiu no meio da floresta.

                   Tão logo fiquei só, chamei seu Pluéricles, o caseiro, e perguntei a ele sobre o tal cemitério. De fato, confirmou a existência; e até deu o detalhe de que possuía pequena capela, que se encontraria em ruínas. Disse que tudo fora feito por antigos moradores, e que não tinha idéia de quantas pessoas poderiam estar enterradas, até porque nunca lá fora.

                   Mais de duas horas depois, permanecia eu a olhar a linha do horizonte, quando o féretro ressurgiu. Assustei porque junto vinha o caixão. Me dirigi à senhora perguntando o que ocorrera, e ela explicou que o cemitério não existia mais. Ou seja, como ficava sobre um barranco à beira da baía do outro lado da ilha, a erosão tinha levado tudo. Não sobrou nem a capela. Meio desconcertado, suspirei:

                   — Não seja por isso, minha senhora, pode sepultar o seu marido no meio da floresta. Se o cemitério que havia sumiu, a gente inaugura outro.

                   Com os olhos vermelhos de tanto chorar ela agradeceu, fazendo sinal para os homens que carregavam o caixão. Lentamente, voltaram para a embarcação. Eu, sem nada poder fazer, fiquei olhando o féretro. E como sempre acontece em situações exóticas, entrei no meu casebre, peguei gelo no refrigerador movido a gás, e preparei um uísque. Bebi coçando a ponta do nariz. Nada mais lúcido, em tal momento, poderia obrar.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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2 thoughts on “A vida e a morte na ilha. Por Antonio Contente

  1. Meu querido amigo, estou terminando de reler uma das obras de meu primo Moacir Japiassu, “Concerto para Paixão e Desatino”. E alguns de teus textos, como este, me lembram trechos do livro. Mais uma proeza trágica e cômica. Adorei. Obrigada.

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