Golpe sangrento fugiria à nossa tradição. Por Pedro Doria
GOLPE… nossas ditaduras estavam num degrau mais ameno da barbárie vizinha. Jair Bolsonaro liderou o rompimento disso. Planejou um golpe em que o presidente eleito seria envenenado, seu vice aniquilado, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral sequestrado e fuzilado…
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO, EDIÇÃO DE 26 DE NOVEMBRO DE 2024
Há dois tipos de golpe de Estado em nossa cultura latino-americana. O português e o espanhol. António Salazar chegou ao poder em Lisboa por meio de um pacto sem sangue. Francisco Franco sangrou espanhóis aos milhões para chegar ao poder em Madri. Nós, lusos, buscamos o acordo. Os espanhóis puxam o sabre. Foi assim na Inquisição Católica, na colonização das Américas. É assim com golpes. O bolsonarismo ignorou nosso traço cultural e planejou um golpe sangrento. Um golpe espanhol na terra do Brasil.
Não é que não sejamos violentos. Somos. Mas a violência, nós a escondemos nos porões da tortura, nas senzalas, no interior da mata. O rosto que mostramos em público pode ser um disfarce, mas é também pudor de esconder a barbárie.
Quando o marechal Deodoro da Fonseca deu ordem de prisão ao primeiro-ministro Visconde de Ouro Preto, em 1889, não teve coragem de fazê-lo pessoalmente. Quando os generais Tasso Fragoso e Mena Barreto deram voz de prisão ao presidente Washington Luiz, em 1930, estavam armados. Washington recusou a deposição, encheu-se da autoridade presidencial. Os militares poderiam tê-lo rendido, chamado soldados. Poderiam ter dado um tiro. Não. Chamaram o Cardeal Leme para dissuadir o presidente e evitar sangue. O general Eurico Gaspar Dutra pediu a Getúlio Vargas que assinasse uma carta de renúncia. Getúlio leu a situação política, escreveu o nome no papel e foi para São Borja. Aquilo era um golpe de Estado. Todos esses. Golpes militares tipicamente brasileiros. Mesmo quando um integralista destemperado como o general Olímpio Mourão Filho pôs os tanques na rua, em 1964, os generais mais gabaritados que ele negociavam a acomodação. E João Goulart foi-se para Montevidéu.
Somos uma República das Bananas. É a definição que ouvi, certa vez, do cientista político Octavio Amorim Neto. Se militares vez por outra decidem se meter na normalidade da vida política da nação, isso define uma República das Bananas. É o que é — 1889, 1891, 1930, 1937, 1945, 1964 e 1968. Sete golpes militares de sucesso. Oito se considerarmos o contragolpe do marechal Lott, em 1954. Foi para garantir a posse do presidente eleito, mas tirou um presidente provisório para colocar outro. Em cada um desses momentos, ao menos um general decidiu rasgar a Constituição e tomar para si uma decisão que cabia ao povo.
Mas presidentes não embarcaram em automóveis para chegar mortos no outro lado, como no México. Palácios presidenciais não foram bombardeados, como no Chile. Mesmo com toda a violência dos porões, e não foi pouca, nossas ditaduras estavam num degrau mais ameno da barbárie vizinha. Jair Bolsonaro liderou o rompimento disso. Planejou um golpe em que o presidente eleito seria envenenado, seu vice aniquilado, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral sequestrado e fuzilado. Até o marechal Floriano Peixoto se envergonharia.
O Exército brasileiro precisa se envergonhar desses bárbaros em cujos uniformes pregaram uma quarta estrela. É importante compreendermos que dar golpes militares é coisa brasileira, sim. Desse jeito, com lista de assassinatos, é um golpe espanhol, não é português. Não é um golpe brasileiro. É coisa pior. É rasgar por completo a fantasia e assumir-se em público como indiferente à vida humana, à liberdade humana.
Esses generais são homens menores que os golpistas do passado. São homens minúsculos. Merecem nosso nojo, nossa repulsa, não menos.
Luiz Inácio Lula da Silva talvez não seja o presidente ideal para um liberal como eu — mas foi eleito. Comandou um governo corrupto? Sim. Mas foi eleito. Como Jair Messias Bolsonaro foi eleito em 2018. Como Donald Trump foi eleito em 2016 e neste ano. Nenhum é o presidente dos sonhos de um liberal puro-sangue, mas liberais, liberais de verdade, são liberais democratas. E o princípio é este: quem é eleito toma posse. Quando realizamos pleitos seguindo os mesmos métodos, com a mesma tecnologia, fazemos uma aposta conjunta na democracia liberal.
Ela segue alguns princípios. A maioria não impõe seu desejo, as minorias são sempre respeitadas. Calibramos as regras do jogo para que todos, não importa o CEP em que nasçam, tenham direito às mesmas oportunidades. Todos são iguais perante a lei — ninguém é especial. Numa democracia liberal, civis mandam, militares obedecem. E, ao fim de um pleito, quem perde a eleição liga e congratula o vencedor. Não é mero ritual. É marco civilizatório. É o marco civilizatório. O movimento liderado por Jair Bolsonaro se opõe a todos estes princípios. É iliberal. E bárbaro.
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– Pedro Doria – jornalista e escritor. Colunista em O GLOBO
Liberal seria um anti-excentrico? Eu sou anti-excentrico.