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Quando o médico também é escritor. Por Meraldo Zisman

QUANDO O MÉDICO TAMBÉM É ESCRITOR.
(Entre o Estetoscópio e a Palavra)

MÉDICO
Ser médico é conviver com o limite — da vida, da dor, da impotência. É carregar, além do jaleco, o peso invisível das histórias que se repetem entre diagnósticos e despedidas. O hospital tem seus sons, seus cheiros, suas urgências. Mas há dores que não gritam. Sussurram. Silenciam. E exigem outro tipo de escuta — uma escuta que não vem do estetoscópio, mas da alma.

Quando a medicina já não dá conta de tanta vida vivida em carne exposta, nasce a palavra. O médico escreve não por vaidade, mas por necessidade. Escreve para não adoecer também. Porque, entre uma receita e uma certidão de óbito, há um mar de memórias que insiste em não se calar. E é preciso dar vazão ao que o silêncio acumulou.

Cada paciente é mais que um número de leito ou um laudo clínico. É alguém que teve sonhos, amores, medos. A escrita devolve humanidade ao que a rotina médica, por vezes, desumaniza. Ela permite ao médico lembrar que, por trás dos prontuários, há histórias inteiras — e que algumas delas só sobrevivem quando viram palavras.

A literatura, para o médico que escreve, não é luxo. É abrigo. É o espaço onde ele pode dizer, sem reservas: “eu também sofro.” É ali que ele confessa seus medos, seus fracassos, seus limites. Porque ninguém atravessa tantas dores sem se ferir. E as feridas da alma, diferentemente das físicas, não cicatrizam sem expressão. O papel vira campo cirúrgico. A caneta, bisturi. As palavras, pontos que costuram o que se rasgou por dentro.

Há quem salve com bisturi. Outros, com a escuta. Mas alguns, raros e necessários, salvam com ambos. E seria um pecado da omissão não citar aqui três dos maiores exemplos que a medicina e a literatura brasileiras já abrigaram: Pedro Nava, memorialista que transformou a lembrança em gesto de cura; Moacir Scliar, que percorreu as veredas da alma com humor, crítica e ternura; e João Guimarães Rosa, que fez da linguagem um bisturi metafísico — e da alma sertaneja, um organismo vivo.

Esses médicos-escritores não tratam apenas do físico. Tratam do humano que pulsa por baixo da pele. Suas palavras não só narram — salvam. E ensinam que o médico que escreve não é alguém que foge, mas alguém que resiste. Que transborda. Que continua cuidando, mesmo ferido.

A escrita é, para o médico, um modo de continuar respirando depois de tantos adeuses. É um sopro de sentido. Um gesto de cuidado com o humano que nele também habita. Porque há dores que não cabem em exames. Há vazios que não se preenchem com medicamentos. E há lágrimas que não escorrem, mas permanecem ardendo por dentro.

Escrever, nesse contexto, é mais que técnica. É mais que ofício. É um ato de resistência. Um lembrete de que a medicina começa e termina no humano. Que o médico, por mais treinado e técnico que seja, chora, se frustra, também precisa ser cuidado. E às vezes, esse cuidado vem pela palavra. No fim, escrever é estender a mão a quem se debruçou sobre o abismo da dor. É dizer: “eu estive lá. E voltei. E posso ir com você.” É o ato mais silencioso — e talvez mais profundo — de cura. Porque há médicos que salvam vidas. E há os que salvam a memória de tê-las vivido. Ambos são imprescindíveis.

Mas os que escrevem, além de curar, eternizam.

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Meraldo Zisman Médico, psicoterapeuta. É um dos maiores e pioneiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE). Imortal, pela Academia Recifense de Letras, da Cadeira de número 20, cujo patrono é o escritor Alvaro Ferraz.

Relançou – “Nordeste Pigmeu”. Pela Amazon: paradoxum.org/nordestepigmeu

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