
Crise da verdade e a crise do clima. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 2 semanas agoPUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, 9 DE JUNHO DE 2025
Semana passada aconteceu algo estranho. Fui ao Rio Grande do Sul, no programa Fronteiras do Pensamento e fiquei pouco mais de 40 horas desligado dos jornais.
Quando voltei, levei um choque. Tudo me pareceu caótico e inquietante: os voos que servem aos Correios tinham sido suspensos, Trump corta visto de estudantes estrangeiros, senadores e deputados estão envolvidos no escândalo do INSS, o governo gastou milhões em passagens num tempo de fáceis comunicações eletrônicas.
Cheguei a dizer: “Onde é que vamos parar”. Mas imediatamente me lembrei que em outras épocas, eu ironizava os velhos que reclamavam de um curso do mundo que já não podiam compreender.
Será que agora é minha vez de fazer esse papel? O único detalhe que tenho a meu favor é que agora, mais do que nunca, os contornos entre realidade e fantasia estão se dissolvendo.
Não se trata apenas da discussão sobre os bebês reborn com projetos na Câmara e longos comentários na televisão.
Recebi no celular uma entrevista produzida por inteligência artificial na qual entrevistados e entrevistador eram falsos. A especialista que analisava o vídeo registrou apenas alguns movimentos suspeitos na mão de uma das entrevistadas. Nenhum de nós percebeu e é um tipo de problema que resolverão logo.
O título do vídeo era: “Acabou para nós”, pois ele foi analisado da perspectiva de editores, que, por sua vez, tornaram-se supérfluos pela IA.
Num mundo em que a quase totalidade de profissões pode desaparecer é natural a inquietação. Assim como de sermos dependentes das máquinas para um exame médico, uma operação, um trabalho intelectual e o que já se mostrou espantoso: o protagonismo nas guerras. A Ucrânia ataca a Rússia com drones, Israel usou IA para definir alvos de bombardeio.
Vi um filme chamado Mountainhead na tevê. Conta a história de um encontro de quatro bilionários da internet. Têm plataformas, produzem aplicativos e olham o mundo do alto de sua fortuna e poder.
Trata-se de um filme apenas. Mas eles mr interessam também porque, no fundo, esse tipo de pessoa é a grande adversária da tentativa de atenuar a crise climática.
São aceleracionistas, querem ir para a frente, na suposição de que ciência e tecnologia resolvem tudo e, em ultimo caso, a conquista espacial abrirá novos espaços de vida. E que a própria imortalidade nos será dada pelos computadores.
Os gregos já advertiam para o perigo da prática humana que desconhece limites. Ela é o estopim da tragédia. Por isso diferenciavam sagacidade e sabedoria. E o coro na obra de Sófocles afirma: a felicidade depende da sabedoria em todos os sentidos.
Todo esse momento confuso me fez entender melhor os velhos que talvez eu ironizasse porque tinham dificuldade em compreender o curso do mundo. Onde é que nós vamos parar? Esta é a pergunta que faziam com insistência e que, hoje, sem subestimar sua perplexidade, parece-me muito mais angustiante.
Estamos diante de uma catástrofe climática e da substituição da verdade pelas falsas versões.
Os velhos não têm acesso a uma felicidade exuberante. Sempre cito Samuel Beckett: não se passa um dia sem que algo seja acrescido ao nosso saber, desde que suportemos as dores.
Hoje imagino que Beckett tenha se inspirado no Eclesiastes, também citado por Giordano Bruno em 1588: aquele que aumenta o seu saber, aumenta o seu pesar.
Tudo isso não implica em conformismo, pelo contrário. Sabendo distinguir o que é passível de transformação e o que não é, talvez possa conduzir a serenidade necessária para enfrentar esse mundo confuso.
Resolvi abordar o tema pois há muitas maneiras além do espelho para descobrir que envelhecemos.
Uma delas é essa inquietação sobre onde iremos parar, num planeta ameaçado pelo desastre e por aqueles que querem marchar aceleradamente em sua direção embalados pelos lucros e fantasias das big techs.