
PIANO Barthol-berlin königl hoflieferant
O piano. Por Paulo Renato Coelho Netto
… Somente após a morte dela, no dia 1º de maio de 2019, aos 87 anos, descobri que o piano em que tocava e dera aulas a vida inteira, um Barthol-Berlin Königl Hoflieferant, fora fabricado na Alemanha, entre os anos de 1870 e 1880…
Quarta-feira, 11 de março de 2020. A covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, é declarada pandemia mundial. O anúncio foi feito pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, em Genebra, na Suíça.
No dia 10 de março de 2020 tínhamos uma vida. No dia 11 de março o medo, o horror, o pânico, a contaminação e mais de sete milhões de mortes que a pandemia iria fazer nos próximos anos.
Cinco de maio de 2023. Sexta-feira de lua cheia. A OMS anunciava que a covid-19 não configurava mais emergência em saúde pública de importância internacional. O vírus se classificaria como “problema de saúde estabelecido e contínuo”.
Os integrantes do comitê destacaram a tendência decrescente de mortes por covid-19, o declínio nas hospitalizações e nas internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) causadas pelo vírus e os altos níveis de imunidade da população.
O mundo mudou entre os dias 11 de março de 2020 e 5 de maio de 2023. Sete milhões de mortes e famílias destruídas em poucos dias, tempo que o coronavírus precisava para fazer vítimas fatais entre a internação e o óbito.
Decidi, no início da crise sanitária, que não assistiria telejornais e leria notícias somente no fim da tarde.
O restante do tempo ocuparia com filmes, séries, documentários e “Todos os Contos”, de Clarice Lispector, livro que reúne, em um só volume, a íntegra da obra da escritora como cronista.
No isolamento social que fizemos — a única alternativa para sobreviver ao vírus mortal na fase anterior às vacinas — cada um procurou sua própria maneira para vencer a solidão.
Eu escrevi. Na maior parte das vezes no próprio celular, durante as madrugadas, para não acordar ninguém em casa.
E assim foi. A poesia, a música e minhas melhores lembranças foram as vacinas que usei para sobreviver a este período que parece não ter ocorrido.
O parágrafo abaixo registra um desses momentos. É do livro “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de Verde e Amarelo”, do capítulo “O resto é silêncio”.
A paixão pela música é genética. Minha mãe, Therezinha Maria Mattos Coelho Netto, era professora de piano, formada em Música, em São Paulo, onde passou anos estudando como interna em Campinas, no Colégio Sacré-Coeur. Era formada também em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica — PUC Campinas. Somente após a morte dela, no dia 1º de maio de 2019, aos 87 anos, descobri que o piano em que tocava e dera aulas a vida inteira, um Barthol-Berlin Königl Hoflieferant, fora fabricado na Alemanha, entre os anos de 1870 e 1880, praticamente na mesma época em que Thomas Edison inventou a lâmpada incandescente, criada em 1879. Somente aí entendi os candelabros fixados ao lado das partituras do instrumento, com 85 teclas de marfim e ébano. Convivi com uma peça centenária de museu em casa, sem saber, um sobrevivente europeu da Primeira e Segunda Guerra Mundial, importado na década de 1940, para o Brasil. Diante dela e deste piano, tive um dos momentos mais memoráveis da minha vida. Após insistir muito, há alguns anos sem abrir aquela relíquia, a convenci de que tocasse qualquer música. Só estávamos eu, ela e nosso gato, Frederico, no apartamento. Com a calma e a elegância que lhe eram natas, ajustou a altura do banquinho de madeira, igualmente centenário, abriu o piano, tirou o veludo azul desbotado de proteção das teclas e tocou perfeitamente “Tico-Tico no Fubá” − um choro, popularmente chamado de chorinho, dificílimo de executar, composto por Zequinha de Abreu, em 1917. Naquele instante, percebi que o que é nato do ser humano o tempo não tira. A canção “Tico-Tico no Fubá” foi imortalizada e ganhou o mundo na voz da cantora Carmen Miranda. A letra foi criada por Eurico Barreiros e Aloysio de Oliveira. É uma das músicas brasileiras mais conhecidas, gravadas e tocadas no mundo.
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.
Convivi com todos e tudo. Coma Terezinha, linda, adorável e amável, seu filho Renato, uma das pessoas mais loucas e com quem mais me identifiquei na vida e infelizmente com o vírus da COVID-19, aonde atuei na linha de frente trabalhando UTI. Como médico a parte mais difícil da minha vida profissional…Agradeço ter saído vivo e ter ajudado, na medida do possível, alguma pessoa. 🙏🏻