
Beirais. Por Antonio Contente
… há simpáticas essências nos beirais. Por eles escorrem não apenas as águas das chuvas, mas também espíritos de sois e de manhãs, e de tardes, e de noites, e de luas, e de estrelas. Sejam novos ou antigos, eles estão prontos para as oferendas…
Penso que há simpáticas essências nos beirais. Por eles escorrem não apenas as águas das chuvas, mas também espíritos de sois e de manhãs, e de tardes, e de noites, e de luas, e de estrelas. Sejam novos ou antigos, eles estão prontos para as oferendas. Eu, francamente, prefiro os velhos, os ancestrais, os benzidos pelos limos do outrora, pelo verde musgo de heras e de eras, que sempre conduzem às utopias. Se chove, então, ao escorrer os pingos do céu, eles como que se preparam para, depois, vivenciar o filosófico da transformação em pequenos suspiros que se estilhaçam sobre a terra, fecundando-a, ou sobre calçadas, ou sobre pedras que se cobrem de musgos que são a antevéspera da história. Ah, amigos, um velho beiral que pinga, ao som de cantos longínquos, de bem-te-vis ou sabiás, em tardes prontas para as saudades ou para os enleios, é a oração que necessitamos para o alcance.
Há, perto do tugúrio em que, neste bairro campineiro, sou um resistente das coisas da ternura, velho beiral. Ele é como deveriam ser todos os outros, ou seja, término de um telhado de duas águas. Acabou fazendo parte quase primordial dos meus dias, mas, principalmente, das tardes. Na estação em que as chuvas passam a rarear, há uma sistemática de pássaros que chegam por etapas e ficam ali, onde as telhas se debruçam, acho que a imaginar o que vão fazer. Primeiro são duas robustas rolinhas, que descem para o meio do capim não muito alto de um quintal ao lado. Dizem que elas se alimentam de pequenas sementes, mas, também, de pedrinhas. Enquanto tento imaginar como seria isso, chegam os bem-te-vis. Há um que, depois de qualquer simples garoa, rasga o coração levantando as asas, álacre mensageiro de que o dia será alegre, de que a luz também assim o será, mesmo que o mundo se debata em guerras que começam e acabam, que o governo se perca em desgovernos, e que os homens deem mais atenção às competições do que a um canto de passarinho.
Nos limos dos beirais estão eternamente gravados gritos de crianças, suspiros de beijos que foram trocados sob eles, essências de luares que serviram, em última instância, para abrir o peito de algum remoto poeta. Também madrugadas de sumarentos serenos caídos das estrelas, isso sem falar dos sois das manhãs que, depois, escorrem pelas folhas e pelos troncos.
Nos beirais, sobretudo, moram sentidos de paz, sem relação com o que aconteça nas casas que eles cobrem. Os beirais são ilhas, independentes e com autodeterminação, pois só neles formula-se o imponderável. Ontem mesmo, em tarde de céu lavado e ar propício ao bom e ao simples, avistei, revoando sobre o bairro, uma andorinha. Elas agora, segundo garantem os entendidos, estão voltando para o Hemisfério Norte, aonde sopram os ventos da estação mais quente. Mas ela revoou sobre alguns quintais que restam, para então pousar no velho beiral de que falo e me nutro. Por incrível que pareça me olhou e a ela eu olhei. Depois se foi em busca do que talvez seja o seu significado. E eu fiquei, na perspectiva do meu momento, feito de pingos de beirais que ainda consigo transformar, não sei por mais quanto tempo, em suspiros. Necessariamente azuis.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.