O discurso jurídico deve ser modelo de exemplaridade idiomática? Por Aldo Bizzocchi
… a adoção do discurso jurídico como padrão de exemplaridade idiomática para nele basear a norma-padrão da língua portuguesa e, consequentemente, as gramáticas normativas precisa ser feita com cuidado…

Na última semana, causou certa celeuma o despacho do ministro do STF Alexandre de Moraes sobre medida cautelar imposta por ele mesmo ao ex-presidente Jair Bolsonaro, e não só por seu conteúdo um tanto obscuro, o que enseja insegurança jurídica aos defensores do ex-mandatário, mas também por razões linguísticas. É que nele figurou a frase “A JUSTIÇA É CEGA MAIS NÃO É TOLA!!!!!” (sic), que chamou a atenção da imprensa e de professores de português pelo uso do advérbio mais no lugar da conjunção mas, além da ausência de vírgula antes dessa conjunção. O erro no uso do advérbio foi posteriormente corrigido, a falta de vírgula não.
Também chama a atenção em uma sentença judicial o excesso de pontos de exclamação, recurso mais aceitável numa comunicação informal. Mas, lendo com atenção o texto do ministro, é possível encontrar uma série de outras incorreções gramaticais, que passaram despercebidas aos olhos da imprensa. Pode-se argumentar que tais erros sejam fruto da pressa do magistrado em emitir sua decisão e da pressão que tem sofrido por parte dos bolsonaristas e até de Donald Trump, mas o fato é que certos erros, sendo recorrentes, demonstram estar arraigados na escrita do juiz, pois, como dizia meu saudoso pai, “ninguém escreve o número 5 de cabeça para baixo só porque está distraído”.
Na decisão do ministro, encontra-se à página 2 “À PARTIR DAS 19H00 ATÉ AS 6H00 DE SEGUNDA A SEXTA FEIRAS”. Como se sabe, na locução prepositiva a partir de não há crase, portanto, a presença do acento grave na preposição a é injustificável. Também faltou o hífen em sexta feiras — aliás, o correto é o plural sextas-feiras. Na verdade, Moraes teria se saído melhor se tivesse redigido de segunda a sexta-feira ou das segundas às sextas-feiras. O mesmo erro de crase aparece na página 5: “as redes sociais do investigado EDUARDO NANTES BOLSONARO foram utilizadas à favor de JAIR MESSIAS BOLSONARO”.
Voltando à página 2, encontramos “foram divulgadas diversas postagens nas redes sociais, em que o réu JAIR MESSIAS BOLSONARO exibe…”. Aqui temos uma vírgula que transforma uma oração adjetiva que deveria ser restritiva em explicativa. Na página seguinte, encontra-se “Requereu o embargante, que a decisão de eDoc. 1.486 seja esclarecida”. Agora, além do objeto direto separado do verbo por vírgula indevida, teria sido melhor que Moraes fizesse a correlação temporal dos verbos: “requereu que a decisão fosse esclarecida”.
Ainda sobre vírgulas mal empregadas, há na mesma página a frase “ficou consignado que, as condutas praticadas por JAIR MESSIAS BOLSONARO…”; agora temos uma vírgula após a conjunção integrante que, outro emprego incorreto da pontuação. O mesmo acontece à p. 5, em que se lê “uma vez que, as redes sociais do investigado…”.
À p. 3, na mesma frase temos “material pré fabricado” (sem hífen em pré-fabricado) e “posterior postagens”, sem concordância entre adjetivo e substantivo (o correto é posteriores postagens). E ainda “condutas ilícitas que, eventualmente, poderiam ser praticadas por JAIR MESSIAS BOLSONARO, sejam em entrevistas, sejam em atos públicos…”. Pode ser que algum gramático abone o uso das conjunções seja… seja no plural, concordando com condutas ilícitas, mas a boa redação recomenda que seja permaneça invariável no singular, até porque se trata de conjunção e não de verbo, este sim que se flexiona em número. E, ainda na mesma página, aparece “tanto em entrevistas, quanto em discursos públicos ou privados”; ora, não se separam termos correlativos introduzidos por tanto… quanto por vírgula.
Já na p. 4 encontramos “será considerado burla à proibição imposta pela PRIMEIRA TURMA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ao réu JAIR MESSIAS BOLSONARO, à replicação de conteúdo…”. Aqui há três erros: primeiro, a falta de concordância entre o sujeito replicação e o predicativo considerado, pois, na ordem direta, teríamos “a replicação de conteúdo será considerada burla”; segundo, a presença inadequada da vírgula após “BOLSONARO”, separando o sujeito replicação do complemento nominal ao réu JAIR MESSIAS BOLSONARO; terceiro, o acento grave em “à replicação” quando esse a é o artigo definido feminino referente a replicação e não a contração da preposição a com esse artigo, visto que não existe preposição, nem seria cabível que houvesse, nesse contexto. Além disso, no parágrafo seguinte ocorre “teve aplicada as medidas cautelares”, sem a devida concordância entre aplicadas e medidas.
Mais abaixo, no mesmo parágrafo, lê-se “A legislação permite impedir que quaisquer medidas cautelares sejam burladas, como por exemplo, o bloqueio de contas bancárias…”, em que, como se sabe, a locução por exemplo deveria vir isolada entre vírgulas (“como, por exemplo, o bloqueio”). E também “Permitir que o investigado possa abrir uma nova conta bancária ou se utilizar de contas de terceiros para continuar na lavagem de dinheiro, corresponderia a desrespeito flagrante a medida cautelar ensejando a prisão preventiva”, em que temos vírgula onde não deveria haver, isto é, separando o sujeito composto permitir… e se utilizar do verbo corresponderia, mas não a temos onde deveria estar, separando medida cautelar de ensejando, já que aí se introduz oração subordinada. Eu também faria a crase em “desrespeito flagrante à medida cautelar”, já que se trata da medida específica proferida dias antes e não qualquer medida em geral.
No parágrafo a seguir podemos ler “discurso proferido por JAIR MESSIAS BOLSONARO na Câmara do Deputado” (grifo meu). Quem dera este país tivesse só um deputado e não 513 (ou talvez 531 se o veto do presidente Lula for derrubado)! Quanta economia de dinheiro e de leis inúteis e nocivas ao Brasil! E quantas bobagens e absurdos a menos teríamos de ouvir! Mas a Câmara é dos Deputados e não do Deputado. Seria esse erro crasso devido ao próprio Moraes ou a algum de seus assessores, que ajudaram a redigir a decisão, mas não a revisaram?
Como se pode perceber nos exemplos acima, a adoção do discurso jurídico como padrão de exemplaridade idiomática para nele basear a norma-padrão da língua portuguesa e, consequentemente, as gramáticas normativas precisa ser feita com cuidado: é evidente que grandes juristas escrevem bem, sobretudo quando publicam livros de Direito que são revisados pelas editoras, mas petições, sentenças, acórdãos, despachos, intimações, mandados, etc., precisam ser tomadas cum grano salis, pois, se um ministro do Supremo, professor da mais prestigiosa universidade pública brasileira e jurista reconhecido comete erros gramaticais, o que dizer de advogados formados em faculdades de qualidade duvidosa?
Fica aí uma questão para se pensar.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Autor, pela Editora GrupoAlmedina, de “Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br

…”acórdãos, despachos, intimações, mandados, etc., precisam ser tomadAs”?