A viagem interior de FH

 Por Gilberto de Mello Kujawski

…É menos um diário do que um roteiro anotado para orientação do próprio autor, dando conta minuciosa de tudo o que se passa com ele…

Artigo publicado originalmente em O GLOBO, edição de 22 de janeiro de 2016

O interesse imediato na leitura dos “Diários” do ex-presidente Fernando Henrique está na captação do cenário político nos bastidores, e não no palco; vemos o processo político ainda em fase de ensaio, dando seus primeiros passos, sujeito a correções, cheio de hesitações, algo muito distinto de ver a política como espetáculo, com o enredo maduro e os atores seguros, com ar superior e cheios de si. Esta privação com a intimidade secreta do drama político é aquele frisson nouveau, a emoção inédita que acompanha o leitor até o fim do volume.

Prestação de contas? Talvez, mas ressalvando que tal prestação de contas é feita, em primeiro lugar, para serventia do próprio autor. Menos um diário do que um roteiro anotado para orientação do próprio autor, dando conta minuciosa de tudo o que se passa com ele, para que não se perca atropelado pelas surpresas do dia a dia. Vemos um executivo em alerta máximo, ansioso por ver claro tudo o que se passa com ele para saber em que ponto ele está do seu roteiro e para onde ele tem que ir.

Este drama de natureza existencial — de onde venho, onde estou, para onde vou — é que anima e alimenta todo o entrecho deste livro histórico que o leitor tem em mãos. O alerta e o cuidado se explicam não pela ambição de poder, e sim pelo descomunal senso de responsabilidade do autor, o que elucida também toda sua característica disciplina pessoal e profissional (eco, talvez, de seus antepassados militares?).

“O poder embriaga.” Lugar-comum? Sim, mas ao mesmo tempo por uma verdade incontestável. O poder ofusca. No caso do presidente da República, além de ofuscar, catapulta o poderoso para fora da realidade. Ele ingressa no olho do furacão.

Entra-se num redemoinho alucinante no qual se perde o pé firme no chão. Já nem existe chão. Flutua-se muito acima das coisas e das pessoas.

Existe no âmago do poder um elemento demoníaco, que não se limita à sua associação com a violência, como insiste Max Weber. Mesmo sem violência, o caráter demoníaco do poder irrompe no estado de choque arrasador daquele que é guindado de repente ao mando supremo da República. O empossado corre o risco de perder a própria identidade. O princípio da realidade fica estremecido. Sonhos de onipotência, manias de grandeza, confusão de valores éticos e políticos, perigos e ciladas sem conta se armam, a pessoa é arrastada por forças sobre as quais perde o controle. Autoengano.

O poder é uma selva selvaggia que engole o poderoso. Sem a companhia de um Virgílio, ele se perde. O Virgílio de FH, que lhe permitiu vencer o teste do poder foi seu diário, a companhia que lhe deu amparo e direção.

São três as personificações distintas mas inseparáveis, assumidas por FH no seu livro: 1) o autor do “script”, ou do projeto de país; 2) o protagonista do enredo, visto em primeiro plano na cena; 3) o espectador da ação e do seu próprio protagonismo. Autor, protagonista e espectador ao mesmo tempo.

Foi o espectador que redigiu a composição dos “Diários”. O importante, o essencial, é reparar que o espectador não figura aqui de alegre, numa posição ocasional de redator dos livros. Muito pelo contrário, o autor e o protagonista só se completam e atingem a plenitude de suas personalidades, ao serem absorvidos e integrados no espectador. Porque é ele que revela, em seu estágio final, o autor e o protagonista ainda em formação no decorrer do longo relato. O espectador se constitui no crítico ativo e construtivo do autor e do protagonista. Uma espécie de superego político, censurando, corrigindo rumos e sugerindo expedientes e programas ao líder emergente. Sim, o espectador, o redator dos Diários foi o Virgílio que ajudou FH a sair do inferno e voltar a ver as estrelas, a rivedere le stelle.

Esta leitura existencial aqui oferecida dos Diários tem por núcleo o ensimesmamento do autor, a volta para dentro de si mesmo para se reencontrar em meio à dispersão forçada da política arrastando-o para fora de si mesmo.

Em suma, já se disse que a diferença entre o cavalheiro e o gentleman é que o cavalheiro sabe o que deve fazer, e o gentleman, o que não deve fazer. A leitura desse volume I dos “Diários” mostra que FH é um cavalheiro porque sabe o que deve fazer no poder, e um gentleman porque sabe o que não deve fazer com o poder.

Gilberto de Mello Kujawski É escritor e jornalista

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