Sobre acidentes e embrulhadas

Por Josué Machado

Da inconveniência de enrolar-se com o uso vadio do verbo “envolver”.

Um professor de filosofia especialista em política e generalidades escreveu o seguinte período:

“O sociólogo Francisco de Oliveira costumava contar uma história envolvendo Celso Furtado.”

 Pois é, “uma história ENVOLVENDO Celso Furtado.”

“Envolvendo”? A imagem que vem à mente é a de Celso Furtado, já no céu, embrulhadinho num lençol.

Por que não “uma história SOBRE Celso Furtado”?

No jornal, um comentarista político escreveu:

O caso do sítio e do tríplex envolvendo Lula deverá ter consequências rápidas se o STF decidir que o processo volta para a jurisdição do juiz Sérgio Moro.”

 Ele poderia ter escrito melhor: “O caso do sítio e do tríplex, CUJA VERDADEIRA POSSE DELATORES ATRIBUEM a Lula,…”

Ou:

“O Caso do sítio e do tríplex, QUE DELATORES DIZEM SER DE LULA,…”

O fato é que o verbo “envolver” tem sido regularmente maltratado por repórteres, principalmente de rádio, mais do que por articulistas sábios ou nem tanto. Dizem ou escrevem tais repórteres todos os dias coisas como estas:

“Um acidente envolveu uma bicicleta, um trem, um avião e um velocípede na Marginal Tietê.”

Deveria ter dito algo como “HOUVE UMA COLISÃO ENTRE uma bicicleta, um trem, um avião e um velocípede na Marginal do Tietê.

 Além disso, a moçada prefere o gerúndio do pobre “envolver”, que é envolvido nas mais variadas e estranhas circunstâncias.

No rádio, dias atrás:

  1. “Uma paralisação envolvendo manifestantes contra o impeachment está bloqueando a Marginal do Tietê no sentido Castelo Branco perto da ponte do Tatuapé.”

Por que não?: “Uma paralisação PROVOCADA POR manifestantes...”

  1. “Um acidente envolvendo onze veículos está paralisando a Via Anchieta”, disse um deles noutro dia.

Por que não?: “Um choque DE onze veículos…”

E a repórter de TV, em extrema impropriedade:

O crime envolvendo seu filho…”, sobre rapaz assassinado na favela do Alemão. (Ou na comunidade do Alemão, como agora se usa.)

Por que não?: “O ASSASSÍNIO (melhor que “assassinato”) DE SEU FILHO…”

Ou: “A MORTE DE SEU FILHO na favela do Alemão…”

O que significa “envolver”?

Abranger, encantar encerrar, conter; implicar, importar; seduzir, cativar, prender, enlear; cercar; rodear; enredar, comprometer; cobrir, toldar; confundir, misturar; cobrir, enrolando; embrulhar; misturar-se, mesclar-se, confundir-se; relacionar-se afetiva o/ou sexualmente com outrem.

Com seus muitos sentido vagos, “envolver” passou a ser o preferido de quase todos os repórteres de rádio e muitos de TV e jornal encarregados de descrever acidentes, principalmente de trânsito. Daí joias como as anteriores e outras.

Parecem ignorar a existência de verbos como colidir, chocar-se, trombar, bater, atropelar. E os substantivos correspondentes: colisão, choque, trombada, batida, atropelamento. Sem falar em abalroar, abalroamento – palavras feias conhecidas nos tempos de trânsito menos pior.

É sempre envolver. Pior: gostam do gerúndio “envolvendo”.

O que fazer com tal gerúndio? Que ninguém pense coisas feias.

Outro exemplo: um repórter de rádio informou que o Pará e o Maranhão são os estados onde há mais “casamentos envolvendo crianças” – verbo impróprio e marca dolorosa.

Por que será que não disse “casamentos DE crianças”?

O melhor de todos esses envolvimentos, no entanto, talvez tenha sido o registrado por um jornal, que alinhou já faz tempo um tópico inesquecível entre as sugestões para presente:

Um livro envolvendo comidas de Natal.”

Primeiro se imagina um livro-embrulho com pernil e farofa. Mas logo depois se vê na capa a mesa com seus fartos pratos coloridos.

Enfim, por que simplificar com algo como “LIVRO DE RECEITAS PARA O NATAL”, não é mesmo?

Sabedeus.

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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.

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