Nova ditadura envergonha Europa. Por José Couto Nogueira*

Nova ditadura envergonha Europa

Por José Couto Nogueira*

Erdogan oficializou para a Europa e o mundo tendência anti-democrática e pró-muçulmana.

Erdogan, também escancarou a imperdoável cumplicidade européia com o que se passa na Turquia.

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO DOM TOTAL - WWW.DOMTOTAL.COM.BR - EDIÇÃO DE 25/JULHO DE 2016

A Turquia sempre teve uma relação amor/ódio com a Europa, tentando fazer parte dela e conquistá-la, alternada ou simultaneamente. A partir da queda da Constantinopla pós-romana, em 1453, que estabeleceu o Califado, tentou invadir para Norte, sendo sempre travada pelos lituanos, húngaros e polacos. No seu apogeu, o Império Otomano dominava uma área que ia do Mediterrâneo à Índia, incluindo a península da Arábia. Nós séculos XVIII e XIX os califas tinham fronteiras e faziam guerra regularmente com os russos e os persas. Ocasionalmente, com os ingleses.

Na I Guerra Mundial o califa alinhou com os alemães e sofreu uma derrota lapidar. Os turcos perderam todos os territórios que ocupavam e, na revolução que se seguiu, foi instaurada a república. O movimento de modernização do país, iniciado em 1922 com Kemal Ataturk, provocou modificações internas e externas radicais. Ataturk queria um estado moderno, não confessional e democrático, no modelo europeu. E queria fazer parte da cultura europeia, renegando o passado imperialista e muçulmano.

Com o passar dos anos, o país aderiu à NATO, tornou-se o mais importante aliado dos Estados Unidos na região (se não contarmos com Israel, mais do que aliado) e desenvolveu todos os passos, tanto a nível interno como externo, para se tornar uma extensão da Europa política para lá da Europa física. Aderiu, logo em 1968, à Comunidade Econômica Europeia (que precedeu a actual CE) tornou-se “membro associado” da Comunidade em 1992. Desde 1999 que a Turquia é oficialmente candidata a membro de pleno direito da CE.

No entanto, dentro da Comunidade sempre houve grandes resistências à entrada do antigo Império Otomano. Não é geográfica nem culturalmente parte da Europa, antes pelo contrário, sempre foi um inimigo histórico. É muçulmana, mesmo que moderada, enquanto todos os países que integram a Comunidade são cristãos. Mas, sobretudo, não tem uma cultura democrática.

Apesar de toda a legislação promulgada regularmente, sobretudo para ficar mais conforme à da CE, é evidente que a população turca e seus os governantes não têm uma prática democrática. Jornalistas são presos, opositores desaparecem, as prisões são arbitrárias e os tribunais discutíveis, a corrupção congênita, as manifestações reprimidas à bala. A Turquia continua a não reconhecer o genocídio dos armênios e nas suas ruas e escolas a igualdade de gênero é muito relativa.

… Mas, assim como a repressão iniciada logo a 16 pôs a descoberto a verdadeira natureza ditatorial de Erdogan, também escancarou o que tem sido a imperdoável cumplicidade europeia com o que se passa na Turquia.

Contudo, era nesta linha de ocidentalização que a Turquia se mantinha até este mês de Julho de 2016. Porque o fato iniludível é que a partir do pseudo-golpe do dia 15, Erdogan oficializou perante a Europa e todo o mundo uma tendência anti-democrática e pró-muçulmana que vinha desabrochando desde 2003, com a sua eleição para Primeiro Ministro.

Mas, assim como a repressão iniciada logo a 16 pôs a descoberto a verdadeira natureza ditatorial de Erdogan, também escancarou o que tem sido a imperdoável cumplicidade europeia com o que se passa na Turquia.

Por um lado, a Europa (neste particular, juntamente com os Estados Unidos) não tem querido alienar o seu único aliado muçulmano e membro fundamental da NATO, um país com uma localização geográfica que tanto o torna uma ameaça na fronteira sudeste do continente como um tampão com todos os países muçulmanos hostis. Por outro lado, a Europa tem utilizado a mão de obra barata fornecida pela Turquia (dois milhões de turcos na Alemanha) e não quer admitir preconceito contra um aliado de grande importância estratégica.

Mas agora, com Erdogan a prender e espancar milhares de militares, juízes, médicos, assistentes sociais e civis variados, desde jornalistas a dirigentes sindicais, ameaçando-os com “castigo severo” mesmo antes de qualquer julgamento, fica difícil assobiar de lado e dizer que são apenas particularidades culturais. A gota de água poderá ocorrer se Erdogan instituir a pena de morte, o que já ameaçou fazer – com a pena de morte, a Turquia perde qualquer hipótese de acordo com a Europa.

Todavia esse cenário não resolve nada. Se a UE cortar todos os acordos com Ancara, o que fará com os milhões de turcos que vivem na Europa? E como fica a questão da NATO? Erdogan irá brevemente a Moscovo, numa óbvia chantagem de mudança de cenário. Putin não esconde a sua satisfação com um possível desaparecimento da pressão da NATO na sua fronteira Sul, e não o incomoda que a Turquia seja uma ditadura muçulmana.

Há ainda a questão dos refugiados. Bruxelas assinou um tratado vergonhoso com Ancara, segundo o qual lhe envia os refugiados sírios a troco de dinheiro e vistos de entrada para os turcos na UE. Segundo a Europol, mais de 15 mil crianças reenviadas já desapareceram, vendidas como escravas, desmembradas para venda de órgãos, assassinadas, sabe-se lá. Sobre o destino desses refugiados, nada se sabe, mas só é possível supor coisas horríveis. Tenebroso é o destino dum ser humano que não pode voltar à Síria donde saiu e é reenviado para a Turquia.

Que irá a Europa fazer? Aceitar a ditadura turca? Ignorar o destino de milhões de refugiados?

Exatamente. É isso que Bruxelas irá fazer. A vergonha deixou de existir num continente que não tem exército que o defenda ou, sequer, políticos capazes de enfrentar os desafios da decadência.

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jose nogueira* José Couto Nogueira nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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