Exorcizar é preciso; comunicar ainda mais

Dentre
as novidades do último Relatório Trimestral de Inflação
(RTI) destaca-se a adoção de uma nova forma de introduzir a política fiscal nos
modelos do BC. Ao invés do superávit primário consolidado do setor público, o
BC passou a usar o superávit primário estrutural, o que, em tese ao menos,
representa um avanço considerável para capturar a real postura da política
fiscal. Antes, porém, de explorar possíveis consequências desta medida, é bom
examinar com um pouco mais de detalhe o que significa este conceito, assim como
as vantagens e riscos que oferece na comparação com a metodologia anterior.
Estamos
acostumados a pensar no resultado fiscal como uma variável de política, sob
controle do governo, o que é parcialmente verdade, mas não captura integralmente
o fenômeno. Na verdade, tanto a arrecadação quanto (em menor medida) os gastos
públicos também reagem de forma automática ao ciclo econômico.
Não
é preciso grande esforço de imaginação para notar que a arrecadação tende a ser
pró-cíclica, isto é, a aumentar nos momentos em que a economia cresce mais
forte, assim como peder fôlego quando a atividade assim o faz. Alguns gastos
também tendem a seguir o ciclo, embora no Brasil o efeito só pareça ter alguma
relevância no caso do seguro-desemprego, equivalente a pouco menos de 1% do
PIB.
Desta
forma, na ausência de medidas compensatórias, o superávit aumenta quando a
economia se aquece e, de forma inversa, encolhe em períodos recessivos, processo
que na literatura econômica é descrito como “estabilizador automático”.
O
funcionamento dos estabilizadores automáticos traz, portanto, uma dificuldade
para avaliação da verdadeira postura fiscal. Um superávit elevado, por exemplo,
pode resultar tanto de uma política fiscal austera como de uma economia
sobreaquecida. No caso, embora o estabilizador automático ajude, em alguma
medida, a moderar o sobreaquecimento, é possível que a postura fiscal seja
inadequada, isto é, pode ser necessário que ela estivesse ainda mais apertada.
Não
faz sentido, portanto, à luz do que foi descrito acima, comparar diretamente
resultados fiscais, seja entre países, seja num mesmo país ao longo do tempo,
sem tentar, de alguma forma, isolar o efeito do ciclo econômico sobre as contas
do governo. Isto é feito através da estimação do balanço fiscal “ciclicamente
ajustado”, às vezes denominado “superávit de pleno emprego”.
A
ideia é simples, muito embora sua execução não o seja: calcula-se qual seria o
resultado fiscal caso a economia estivesse operando próxima ao seu potencial. Sob
tais circunstâncias o resultado estimado reflete unicamente a postura fiscal,
não o estado da economia. Em particular, se o superávit ciclicamente ajustado
aumenta, a política é inequivocamente contracionista; caso contrário,
expansionista.
Adicionalmente,
por conta da tristemente célebre contabilidade criativa em alta nos últimos
anos, é também necessário “exorcizar” o balanço fiscal de seres imaginários,
como o Fundo Soberano, ou receitas de “Cessão Onerosa de Exploração de
Petróleo”.
A
aplicação de ambos os ajustes (cíclico e o exorcismo da contabilidade criativa)
sobre o resultado primário observado gera o chamado resultado primário
estrutural, que, pelas razões acima, representa um guia mais fidedigno da política
fiscal.
Há,
é bom que se diga, dificuldades. Embora o conceito do resultado ciclicamente
ajustado seja relativamente simples, sua estimativa depende de parâmetros a
rigor desconhecidos como o PIB potencial, problema nada trivial para quem já
tratou do assunto. Fora isto, são necessárias estimativas confiáveis da reação
da arrecadação a mudanças do nível de atividade e outras questões empíricas, no
mínimo trabalhosas.
Isto
dito, não resta dúvida que, do ponto de vista analítico, todas estas
dificuldades pouco representam em face da enorme vantagem de passarmos a
trabalhar com uma medida de política fiscal que capture, ainda que
imperfeitamente, a real postura do governo ao invés de engolir as
crescentemente desacreditadas estatísticas oficiais. Neste aspecto, a adoção do
superávit primário estrutural é uma inovação relevante e merece nossos
aplausos, ao contrário da quase tudo originado do BC nos últimos anos.
Ao
mesmo tempo, porém, há um requisito adicional de transparência. Não cabem mais
declarações vagas acerca da política fiscal atrás das quais o BC costuma se
esconder como, por exemplo: “considera-se como hipótese de trabalho a geração
de superávit primário de R$155,9 bilhões em 2013, conforme os parâmetros da Lei
de Diretrizes Orçamentárias (LDO)”.

É
necessário agora que o BC explicite suas premissas acerca do superávit
estrutural ao longo do horizonte de previsão de política monetária para que
possamos avaliar se suas decisões de política, a exemplo de seus modelos,
também reagem às diferentes condições de política fiscal. Sem transparência, a
mudança torna-se um mero exercício acadêmico, sem maior relevância para a avaliação
da política monetária.
Não basta exorcizar; tem
que comunicar.
(Publicado 4/Jul/2013)

24 thoughts on “Exorcizar é preciso; comunicar ainda mais

  1. Alexandre,

    O que acha da ideia de um balanço estrutural, no estilo do Chile, utilizando o Fundo Soberano ou o futuro Fundo Social como buffer?

  2. Eu ia postar no facebook, mas acho que meus amigos não entenderiam, então vai aqui mesmo 🙂

    O que queremos???

    Câmbio depreciado, inflação baixa e crescimento alto!!!!

    Como queremos???

    Sem usar reservas nem mexer nos juros, incentivando o consumo e gastando muito!!!

    Alguém se anima de colocar o texto no meme do "o que queremos?"?

  3. Alex

    “Neste aspecto, a adoção do superávit primário estrutural é uma inovação relevante e merece nossos aplausos, ao contrário da quase tudo originado do BC nos últimos anos.” […]

    “Sem transparência, a mudança torna-se um mero exercício acadêmico, sem maior relevância para a avaliação da política monetária.”

    O post é muito interessante e oportuno.

    Fico pensando se a falta de transparência do BC é um indicador de limite de autonomia.

    Ao que parece, a turma do BC começa a marcar uma posição, isto é, está cada vez mais visível o incomodo de um conjunto de economistas do governo com o rumo da política econômica imposta pelos çábios que comandam o MF e, consequentemente, os bancos públicos.

    No post de hoje do Mansueto (Bancos Públicos? Benção ou maldição?) podemos ler que “quase 100% dos assessores do Ministério da Fazenda e Banco Central acham um absurdo – sei porque converso com eles e sei razoavelmente bem o que ocorre na cozinha de Brasília”. Mansueto referiu-se à “expansão, irresponsável, da dívida pública bruta que varias pessoas da “elite” da equipe econômica acham normal”.
    Enfim, há evidentes sinais sendo emitidos de dentro do governo a respeito da falência do modelo novo-desenvolvimentista (se é mesmo isso que nomeia a coisa em curso) implementado nesses últimos anos pela “elite” da equipe econômica.
    Se quiseres responder, gostaria de saber como você explica esse comportamento da “elite” para além dos merecidos adjetivos unidos ao campo semântico da palavra “inépcia”.

    Samuel Pessoa (minha narrativa pode não ser fiel, pois cito de memória), em seminário no Instituto Braudel, apresentou uma rápida análise e ressaltou dois elementos para explicar por que a quermesse recusa-se a reconhecer e a enfrentar problemas que a realidade escancara todo santo dia: Entendimento dogmático do chamado modelo coreano aliado à aversão intelectual dos quermesseiros aos instrumentos de análise operados pela econometria.

    Abs.

  4. esse governo tá numa
    sinuca de bico

    O efeito do aumento da tx selic e da TR será terrível.

    O mercado já se adiantou, bolsas caem, industrias parando, lançamentos cancelados, grandes empresas demitindo, fundos de investimento resgatando.

    Imagina depois da Copa

  5. Grande Alex,

    Você certa vez produziu um gráfico muito instigante, que mostrava as trajetórias do grau de utilização dos recusos e da média dos núcleos de inflação.

    Algumas dúvidas:

    (i) que peso você atribui ao capital e ao trabalho? Por acaso 0,4 e 0,6 respectivamente?

    (ii) já experimentou fazer este gráfico não começando em 2007, mas ao longo de toda a última década, para ver como as trajetórias se descolam, e muito? OK, existem outros fatores, mas é instigante assim mesmo…

    (iii) como é possível estarmos com pressão de demanda e com NUCI abaixo de seu nível natural (calculado por HP), salários (nominais e reais) de admissão do caged com desaceleração, taxa de desemprego da PED acima de seu nível natural (calculado por HP) e número de horas trabalhadas em queda?

    (iv) como é possível haver pressão de demanda com um índice de difusão, na margem, cada vez menor no IPCA?

    São apenas dúvidas mesmo. Adoraria poder contar com sua opinião, pois está muito difícil interpretar a economia brasileira…

    Forte Abraço

    Economista X

  6. Alex,li o artigo de -miguel-srougi- na folha.Alguns "números" me chamaram a atenção:"Igualmente falaciosa é a proposta de incrementar os recursos para a saúde. Num país como o Brasil, que gasta apenas 8,7% do seu Orçamento em saúde –muito menos que a Argentina (20,4%) e Colômbia (18,2%)– somente mal-intencionados poderão acreditar que um aporte de recursos de 0,7% corrigirá a indecência nacional. "

    Esses países gastam tudo isso com saúde 20% do PIB?

  7. Anônimo disse…
    Alex,li o artigo de -miguel-srougi- na folha.Alguns "números" me chamaram a atenção:"Igualmente falaciosa é a proposta de incrementar os recursos para a saúde. Num país como o Brasil, que gasta apenas 8,7% do seu Orçamento em saúde –muito menos que a Argentina (20,4%) e Colômbia (18,2%)– somente mal-intencionados poderão acreditar que um aporte de recursos de 0,7% corrigirá a indecência nacional. "

    Esses países gastam tudo isso com saúde 20% do PIB?

    6 de julho de 2013 13:45

    ————–

    PIB eh uma coisa, orçamento eh outra ne….

  8. O Sr. Miguel Srougi tentou fazer o leitor de trouxa, ao comparar gasto de saude como fracao do orcamento (ao inves de fracao do PIB).

    "O"

  9. "Esses países gastam tudo isso com saúde 20% do PIB?"

    Mais um artigo corporativo.

    Segundo a Unesco, gasto com saúde em % do PIB (2010):

    Cuba 12,9
    NZelandia 7,2
    Noruega 6,9
    Israel 6
    Argentina 5,8
    Brasil 5,8
    EUA 5,6
    Mexico 5,3
    Chile 4,2
    India 3,3

  10. Nao e realmente um ponto sobre a plotica macroeconomica, mas essa proposta sobre a reforma da carreira medica demonstra por que o governo nao vai permitir um banco central independente que eleve os juros ou tomar quaisqquer medidas nos proximos 12 meses que tenha impacto negativo no curto prazo.

    A reforma da carreira medica

    1) e uma reforma estrutural com efeitos de longo prazo, provavelmente negativos, na qualidade e quantidade de medicos.

    2) nao tem efeito nenhum nos proximos 2-3 anos

    3) no horizonte de 3-6 anos nao tem efeito algum em muitos dos problemas fundamentais e estruturais da qualidade da saude. Eu nao sei no Brasil, mas nos US a remuneracao de medicos corresponde a menos de 10% dos custos totais de saude. Eu nao vi nenhum documento ou estudo de fonte digna que diga que no Brasil ela corresponda a moas que, digamos, 30 ou 35%. Alem disso, mesmo que seja uma porcao maior (o que parece duvidoso, mas nao impossivel) nao e nada obvio que comprimir a remuneracao aumentando o oferta de "medicos" (voce deixaria um recem formado sem residencia ou supervisao tratar seu filho?) e a solucao do problema

    4) demonstra uma inclinacao a medidas estruturais sem impacto por pura demagogia, mesmo que elas impliquem em riscos grnades no futuro

    E de perder a esperanca, mesmo. Mentalidade atrasada. Bando de filhos da puta.

  11. O Alex deve estar bastante atarefado nesses últimos dias (ou sem saco). Faz algum tempo que diminuiu a frequencia de posts e não anda respondendo muitos comentários.

    Será o trabalho de consultoria ou será que está participando do núcleo econômico de algum dos candidatos a presidente/governador do ano que vem?

  12. (i) que peso você atribui ao capital e ao trabalho? Por acaso 0,4 e 0,6 respectivamente?

    Sim, mas uma análise de sensibilidade ao redor destes valores não muda as conclusões

    (ii) já experimentou fazer este gráfico não começando em 2007, mas ao longo de toda a última década, para ver como as trajetórias se descolam, e muito? OK, existem outros fatores, mas é instigante assim mesmo…

    Isto depende crucialmente da estabilidade das expectativas e, portanto, do regime de política (Crítica de Lucas), sem contar a instabilidade cambial.

    Não quer dizer que não funcione; funciona, mas tem que colocar as variáveis de controle, o que não é possível num gráfico com duas dimensões.

    (iii) como é possível estarmos com pressão de demanda e com NUCI abaixo de seu nível natural (calculado por HP), salários (nominais e reais) de admissão do caged com desaceleração, taxa de desemprego da PED acima de seu nível natural (calculado por HP) e número de horas trabalhadas em queda?

    Acabei de passar um HP pela NUCI. Sugestão de pornografia à parte, o HP sugere um NUCI* na casa de 82,5%, que vem a ser muito próximo dos níveis observados nos últimos meses.

    Quanto à taxa de desemprego, não dá para usar HP, porque o filtro extrapola a tendência de queda e aponta para uma NAIRU muito baixa, O Pastore tem estimativas com base no trabalho da Marta Areosa que sugere uma NUCI na casa de 6,5%, se a memória não "faia" (às vezes "faia").

    E, se os salários estão (aparentemente) desacelerando, ainda crescem muito acima da produtividade. De qualquer forma, já observamos uma desaceleração temporária em meados do ano passado, seguida por reaceleração.

    (iv) como é possível haver pressão de demanda com um índice de difusão, na margem, cada vez menor no IPCA?

    O índice de difusão tem sazonalidade forte: elevado no primeiro e últimos tris; mais baixo no segundo e terceiro tris. Tem que comparar com a média e máximo observado em cada mês para saber se é puramente sazonal ou se há algo além disto.

    Isto dito, em maio e (principalmente) junho, parece ser o segundo caso (i.e., a queda indo além da sazonalidade), mas, francamente, o número de junho me parece um ponto fora da curva (a ver nas próximas observações do IPCA).

    Abs

  13. E, sim, estou ocupadíssimo, mas não com candidatos (que candidato vai querer me ouvir?). Dois livros a caminho, mas muito atrasados. Fora a consultoria e as aulas (férias sendo usadas para deixar os livros menos atrasados).

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