Scupaí, Dotô. Por José Paulo Cavalcanti Filho

SCUPAÍ, DOTÔ

Por José Paulo Cavalcanti Filho

…apontando para o grupo comandado por Zeca Calazans, respondeu: “Foi seus amigo”. Que, a esta altura, estavam rebolando na areia. De rir. Só então Negão se virou para mim e disse, com cara de arrependido: “Scupaí, dotô. Parece que o sinhô apanhou de graça”. Fim das aulas de capoeira…

A vida, para Victor Hugo (em Monte de Pedras), “é uma frase interrompida”. Já na definição de Pessoa (Soares, no Desassossego), parecido, é somente “a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final”. É pensando nessa vida, “insolvente e provisória” (Carlos Pena, A solidão e sua Porta), que lembro do amigo Zeca Calazans. Fomos para Salvador num carrinho azul que tinha – ele,  meu irmão José Roberto, Alceu Valença e este pobre que vos fala. Num intervalo dos afazeres, fomos ao Pelourinho. Para ver, na Academia de Mestre Pastinha, como era mesmo a tal capoeira. Ficamos encantados com aquela mistura de dança e luta. E contratamos Negão (atenção, pessoal do politicamente correto, não se trata de preconceito, é só como o chamavam) para nos ensinar.

Chegamos na praia de Amaralina, onde estávamos abrigados (em casa de uma tia). Pagamos o capoeirista e começamos a nos preparar. Problema foi quando Negão ficou de calção. A barriga, como diz hoje a meninada, era tanquinho. As pernas pareciam dois tonéis. Cada braço… Resumindo, tratava-se de um trojão. Os três correram, na hora. Com medo. Argumentei que o homem já tinha sido pago. Estava lá para nos ensinar. Responderam que, se levassem um golpe dele, iriam morrer. Pois então vou eu, que não sou de jogar dinheiro fora. Pra quê? Só para me arrepender.

Começamos a aula e, em 10 segundos, levei uma pernada entre o cotovelo e o ombro esquerdo. Olhei, perplexo, para Negão. E ele disse, apenas, “Scupaí, dotô”. Continuamos. E, de novo, outra pernada. No mesmo lugar. Recomeçamos. E mais outra. Um minuto e o braço estava já todo roxo. Perguntei o que estava acontecendo. Negão respondeu, mansamente: “Elas por elas, dotô. O sinhô diz por aí que eu sou viado (novamente atenção, apenas reproduzo as palavras dele), e eu li dou umas porradinha de leve. Tamo quites”. Como se fosse a coisa mais natural do mundo. Pensando bem, eu deveria era estar agradecido. Que ele não chutou minha cabeça porque não quis.

…Só que, por educação, depois não se esqueçam de dizer, como o filosófo Negão: Scupaí dotô, deputado, senadô, ministru, presidenti.

Quem foi que lhe disse isso?, Negão. E ele, apontando para o grupo comandado por Zeca Calazans, respondeu: “Foi seus amigo”. Que, a esta altura, estavam rebolando na areia. De rir. Só então Negão se virou para mim e disse, com cara de arrependido: “Scupaí, dotô. Parece que o sinhô apanhou de graça”. Fim das aulas de capoeira. Nunca mais soube de Negão. Passei a chamar Calazans de Canalhães, por conta desse episódio lamentável (para mim). Domingo, na capela do cemitério de Santo Amaro, fomos dizer adeus a Canalhães. Querido amigo. Saudades dele.

A moral dessa história, para aqueles que pensam toda história deva ter sua moral, é que algumas vezes a gente apanha sem culpa nenhuma. Só que, em outras, o cidadão está quase pedindo. Especialmente, nos tempos atuais, em nosso amado Brasil. Nas ruas, nos restaurantes, nos aviões, em toda parte. Sugestão que dou, quem sou eu para dar sugestão a ninguém!, é que essa gente indignada não deixe de fazer isso. Continue protestando. Para que os poderosos escutem, com a pele, o som que vem da indignação dos indeterminados cidadãos comuns. “Ouça as ruas, Ministro”, palavras de Joaquim Barbosa. Só que, por educação, depois não se esqueçam de dizer, como o filosófo Negão: Scupaí dotô, deputado, senadô, ministru, presidenti.

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José Paulo Cavalcanti FilhoÉ advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.
jp@jpc.com.br

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