Kriptonita e déficit externo

Imagine uma empresa que fature R$ 100 milhões/ano. Usa $ 62 milhões para pagar seus funcionários, R$ 21 milhões para a diretoria e os restantes R$ 17 milhões para investir e aumentar seu faturamento nos próximos anos, configuração que mantém seu fluxo de caixa devidamente equilibrado. No entanto, novas oportunidades de investimento aparecem e não há dúvida que, no melhor interesse dos seus acionistas, a empresa deve aproveitá-las. O que fazer?

Para financiar o investimento adicional só existem três alternativas: reduzir o pagamento aos funcionários; baixar a remuneração da diretoria; ou ir a mercado, seja tomando empréstimos, seja emitindo novas ações. Considere, porém, que a empresa decida pela terceira opção. Caso o retorno dos projetos seja maior que o custo do capital não há maiores problemas: com a maturação dos projetos o fluxo suplementar de caixa será superior à remuneração do capital adicional e a empresa, após certo tempo, terá plenas condições de remunerar seus credores e acionistas.

É fácil concluir que, sob as condições acima, tomar recursos no mercado, o equivalente a um déficit no seu fluxo de caixa, é uma boa decisão e qualquer analista digno deste título irá louvar a estratégia empresarial.

Caso, porém, a empresa estivesse incorrendo em déficits devido a investimentos ruins, ou gastos maiores com funcionários e diretoria, a reação seria a oposta. Sem o crescimento adicional do seu faturamento, ela teria dificuldades para servir seus novos compromissos e, assim, não apenas os preços de suas ações cairiam, mas também os custos associados a novas dívidas se tornariam maiores, refletindo riscos mais elevados quanto à sua capacidade de pagamento.

A esta altura os 17 leitores já chegaram a duas conclusões importantes. A primeira é que déficits não são, em si mesmos, bons ou ruins; o que interessa é o que se faz com os recursos tomados ao longo deste período, isto é, se os investimos em bons projetos, ou se os consumimos em despesas que não gerarão receita adicional.

A segunda conclusão é que não estou falando de uma empresa, mas sim do Brasil, país em que, nos 12 meses terminados em setembro de 2009, o consumo privado respondeu por 62% do PIB, o consumo público por 21%, e o investimento por modestos 17%.

Esperamos (na verdade ansiamos) que o investimento se eleve como proporção do produto, pois se trata de fator crucial para que o país possa acelerar sua taxa de crescimento de longo prazo, mas, como no caso acima, as alternativas existentes são apenas três: reduzir o consumo privado (aumentar a poupança), reduzir o consumo público (fazer o ajuste fiscal), ou incorrer em déficits externos. Não há dúvida que optamos pelo terceiro caminho.

Nossos “keyenesianos de quermesse” associam esta escolha ao ressurgimento da chamada “vulnerabilidade externa”, mas, pela discussão acima, deve ficar claro que esta vulnerabilidade depende do que for feito com os recursos que forem tomados, seja sob a forma de investimento estrangeiro, seja sob a forma de dívida (há uma diferença importante entre eles que, por falta de espaço, não vou abordar).

Caso estes recursos sejam utilizados para financiar o ritmo crescente dos gastos públicos provavelmente enfrentaremos problemas à frente, quando a expansão do PIB não se mostrar suficiente para servir ao capital tomado. Usados, porém, para investimentos que acelerem não apenas nosso crescimento, mas também as exportações, não há porque temer déficits externos. Déficit não é kriptonita; o que fazemos com ele é.

(Publicado 3/Fev/2010)

27 thoughts on “Kriptonita e déficit externo

  1. "O", vc podia comentar algumas questoes da prova especifica para economista do concurso do Bacen, que ocorreu neste domingo. Ta no site da cesgranrio, area 2. Tenho certeza que encontrara alguns gabaritos absurdos.

    Ps: Desculpe, estou sem acentos.

  2. Interessante que voce nao discutiu uma questao fundamental do ponto de vista dos acionistas: qual e a alternativa melhor entre as tres?

    Se voce puder cortar os 62 ou 17 sem comprometer o crescimento da empresa, e certamente melhor do que diluir os acionistas ou aumentar a divida da empresa na esperanca que retornos sejam maiores que o custo de capital ajustado. (talvez a analogia nao funcione com os 62,nao tenho certeza, mas certamente funciona com os 17).

    O problema aqui e um problema de agencia. a diretoria nao vai cortar os proprios salarios.

    PIG

  3. "Interessante que voce nao discutiu uma questao fundamental do ponto de vista dos acionistas: qual e a alternativa melhor entre as tres?"

    3500 caracteres…

    Eu passei de leve pelo assunto, porém, quando escrevi "Caso, porém, a empresa estivesse incorrendo em déficits devido a investimentos ruins, ou gastos maiores com funcionários e diretoria, a reação seria a oposta".

  4. "Um aspecto negativo do regime de metas para a
    inflação é que os agentes econômicos antecipam a
    direção da política e, portanto, não havendo o
    elemento surpresa, ela não atingirá seus objetivos." (QUESTÃO 20 – PROVA ESPECÍFICA – ÁREA 2 – BC-2010)

    Obviamente é falsa, mas isso não abre margem para discussão?

  5. "Se é tão óbvia, pq abriria espaço para discussão?"

    Não sei, pensei que pode ter gente no meio da quermesse que acharia verdadeira a colocação… Como não foram colocadas hipóteses, tipo Expectativas Racionais etc, pensei que poderia abrir margem pra discussão. Pareceu-me que daria no mesmo se fosse colocado um "Na sua opinião" no início da pergunta…

    Abraço!

  6. Deficit moderado em conta corrente é bom,ruim é ele muito alto.

    Tio "Sam" antes da crise tinha um deficit de 6%.O que era insustentavel,bastou o Lehman quebrar que o déficit foi pra 2%.

  7. Olha a dupla dinâmica que se formou hoje como autores de um artigo no Valor Econômico: Bresser-Pereira e Jose Luis Oreiro.

    Assinam um verdadeiro artigo de auto promoção.

    E alguém conhece ou leva a sério esta idéia do "novo-desenvolvimentismo"? E eu não entendi no artigo que primeiro o "novo-desenvolvimentismo" é indevidamente associado à defesa de déficits fiscais crescentes, mas num tal contexto lá, a defesa que eles fazem da austeridade fiscal seria uma confissão de submissão à ortodoxia e ao neoliberalismo.

    Que coisa mais esquizofrenica, ser associado ao mesmo tempo à ortodoxia e ao populismo fiscal.

    O artigo usa aquela velha técnica de criar uma falsa polêmica para vender mais facilmente o peixe. E Alex, os dois parecem estar mais preocupados com os gastos publicos e a divida publica do que você, dá para acreditar?

  8. "E alguém conhece ou leva a sério esta idéia do "novo-desenvolvimentismo"?"

    Ao que parece esse será o mote do próximo governo, seja Dilma ou Serra. Apesar da retirada dos estimulos anticrise de agora, a idéia dos dirigentes da economia de agora em diante será turbinar a economia a qualquer custo.

    A idéia de neodesenvolvimentismo vem apenas para justificar a realização na economia. Eu li um artigo do Bressão ainda em 2007 sobre esse assunto.

    O próprio Big Bald parece estar seduzido pela idéia de que essa pode ser uma boa política. Vejam o vídeo:
    http://economia.estadao.com.br/videos/videos,schwartzman-perspectivas-para-a-economia,87432,,0.htm

    "KY"

  9. Olá galera,

    Há um concurso de monetária na praça. Os nove primeiros pontos são estes. Sem críticas, quem se arrisca?

    1. Origem, natureza e funções do dinheiro na teoria de Marx.

    2. Determinação marxista da quantidade de dinheiro em circulação e a teoria quantitativa da moeda.

    3. A teoria dos juros e da taxa de juros de Marx. O capital portador de juros e a divisão do lucro médio em lucro do empresário e juros.

    4. As funções do crédito e as fontes do capital emprestável segundo a teoria de Marx.

    5. Hilferding e a teoria marxista do crédito bancário e do capital
    financeiro.

    6.Teorias chartalista e da moeda-mercadoria como alternativas para as origens e a natureza da moeda.

    7.Teorias Pós-Keynesianas da Moeda Endógena Comparadas: Horizontalismo e Estruturalismo.

    8.O Novo Consenso Monetário e suas críticas.

    9.A Hipótese da Instabilidade Financeira de Hyman Minsky.

  10. "quem é vc cara?"

    O anônimo aqui é o "O".

    E há uma distância enorme entre mote e programa econômico.

    Eu me referi à nova roupagem que a quermesse quer assumir, que é se autoproclamar "novo-desenvolvimentista".

    Mas esperar o que de quem já criou um teorema junto com Keynes (foi psicografia?), autoproclamação e papel de vítima parecem ser hábitos rotineiros.

  11. “Ao que parece esse será o mote do próximo governo, seja Dilma ou Serra. Apesar da retirada dos estimulos anticrise de agora, a idéia dos dirigentes da economia de agora em diante será turbinar a economia a qualquer custo.”

    Querer não é poder.

  12. Bacana o post.
    Só não acho que déficit na mão de uma instituição que não visa o lucro, e sim, as próximas eleições, possa resultar em algum aumento significativo da capacidade produtiva. O governo não tem critério de performance…

    Havendo margem para aumento da capacidade produtiva em ritmo mais acelerado do que os juros, não vejo por que os próprios agentes econômicos (e não o grande "agente político") não poderiam buscar esse capital no exterior por conta própria. Imagino que se não buscaram, é porque algo não cheira bem…

  13. O ajuste fiscal sem dúvida seria a melhor opção, pois conseguiríamos elevar a taxa de poupança e consequentemente a taxa de investimento sem a necessidade de grandes empréstimos. O setor público brasileiro representa nosso grande gargalo ao crescimento sustentado e de longo prazo.

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