Eterno retorno. Por Alexandre Schwartsman

Eterno retorno

Por Alexandre Schwartsman

… apelar às reservas internacionais como fonte de financiamento é apenas um disfarce. Trata-se, em última análise, de replicar os mesmos mecanismos usados à exaustão pela assim chamada Nova Matriz Econômica, cujo legado ainda pagamos, muito provavelmente com o mesmo grau de fracasso.

Publicado originalmente na Folha de S.Paulo,  Coluna do autor, 

 edição de 10 de outubro de 2018

Já nos livramos do mediocrérrimo Ciro Gomes, mas algumas de suas propostas ainda nos assombram, como o uso das reservas internacionais para financiar obras no país, também apropriada pela agenda econômica de Fernando Haddad. Parece, à primeira vista, um negócio para lá de razoável, mas não sobrevive a 27 segundos de reflexão séria.

Há, de fato, quem defenda que o país detém hoje mais dólares do que precisaria para manter suas contas externas em ordem caso sobrevenha nova crise internacional. Sou agnóstico a este respeito, mas, como ponto de partida, podemos admitir que seja verdade. Neste caso, o que deveríamos fazer com o presumido excesso de reservas, no programa estimado em US$ 40 bilhões?

Dado que as reservas nos rendem 2% ao ano, enquanto pagamos 6,5% ao ano sobre nossa dívida interna, uma das possibilidades seria vender a parcela excedente e usar o dinheiro para reduzir a dívida e o pagamento de juros sobre ela. No câmbio atual, US$ 40 bilhões permitiriam reduzir a dívida do governo em R$ 150 bilhões, de 77,3% do PIB para 75,1% do PIB, cortando nossa conta de juros em quase R$ 7 bilhões/ano (4,5% ao ano sobre R$ 150 bilhões).

Alternativamente, poderíamos adotar a agenda petista e emprestar o dinheiro aqui dentro, ao invés de usá-lo para reduzir o endividamento do governo. Para que esta escolha seja superior precisará render mais que a economia de juros resultante da opção de abater a dívida. Isto significa que os gestores dos recursos retirados das reservas terão que empregá-los em projetos cujo retorno seja maior do que o custo da dívida, nosso custo de oportunidade no presente contexto.

Isto nos leva a duas considerações.  A mais geral é que, se existissem tais projetos, nada impediria que o setor privado usasse seus próprios recursos, não os do Tesouro.

A réplica habitual a esta crítica aponta para alguma hipotética falha de mercado, supostamente corrigida por meio da cobrança de juros abaixo dos pagos pelo Tesouro Nacional, como foi feito de forma avassaladora pelo BNDES entre 2008 e 2014.

Naquele período empréstimos do BNDES saltaram de pouco mais de R$ 300 bilhões para R$ 800 bilhões (a preços de hoje), uma transferência maciça de recursos para empresários bem conectados, que gozaram do benefício devidamente apelidado de Bolsa-Empresário, bem mais generoso que o Bolsa-Família, com resultados conhecidos.

Deve ficar claro, pois, que se trata de alternativa inferior à redução do endividamento, dado que o retorno neste caso é, por construção, inferior ao custo da dívida.

A segunda consideração diz respeito gerenciamento da bolada. Quem garante que os incentivos serão os corretos, ou se, a exemplo do ocorrido com o BNDES, o dinheiro será direcionado por critérios não relacionados à eficiência econômica, mas determinados por causas nada republicanas, como financiamento de um projeto de poder, na forma de recursos para campanhas, “construção” de maiorias parlamentares e outros aspectos da corrupção que assola o país?

A bem da verdade, apelar às reservas internacionais como fonte de financiamento é apenas um disfarce. Trata-se, em última análise, de replicar os mesmos mecanismos usados à exaustão pela assim chamada Nova Matriz Econômica, cujo legado ainda pagamos, muito provavelmente com o mesmo grau de fracasso.

Posso apostar que, ao escrever sobre o eterno retorno, não era isto o que Nietzsche tinha em mente.

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* ALEXANDRE SCHWARTSMANDOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS

@alexschwartsman
aschwartsman@gmail.com

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