Hermanos. Por Alexandre Schwartsman

HERMANOS

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

 Há fortes laços econômicos entre Brasil e Argentina, principalmente por meio das exportações de manufaturas. A recessão lá tem (e terá) repercussões importantes sobre nosso desempenho.

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO INFOMONEY DE 21 DE AGOSTO DE 2019

Ao comentar a crise argentina e seus efeitos sobre a economia nacional o ministro Paulo Guedes fez uma pergunta retórica: “e desde quando o Brasil precisa da Argentina para crescer? ”, dando a entender que o país estaria razoavelmente protegido contra as ondas de choque que vêm do vizinho. A prepotência desconsidera os laços entre os dois países.

É verdade que a economia brasileira é inacreditavelmente fechada, com exportações e importações representando, cada uma, algo como 12% do nosso produto na média dos últimos 10 anos. Trata-se, para bem ou para mal, de uma economia cuja dinâmica, do lado da demanda, sempre dependeu muito mais do mercado interno do que do comércio internacional. Aliás, da forma como encaro a questão, esta baixa exposição à competição externa tem sido bastante prejudicial ao aumento da produtividade no país, com impactos negativos para o crescimento de longo prazo do país.

Embora esta continue a ser uma questão premente, do ponto de vista da recuperação cíclica da economia o obstáculo maior não é o lamentável desempenho da nossa produtividade, que tive oportunidade de comentar em coluna recente.

Todas as indicações que temos sugerem que país trabalha hoje com considerável ociosidade, expressa de forma pungente na taxa de desemprego (sazonalmente ajustada) ainda próxima a 12% (contra uma estimativa de “taxa natural de desemprego” na casa de 9%). Já no que se refere à indústria de transformação, seu grau de utilização de capacidade se encontra ao redor de 77%, comparado a estimativas de um nível “natural” entre 80%-81%.

Não são, portanto, restrições do lado da oferta que impedem o crescimento mais rápido neste momento, ainda que sejam preponderantes quando analisamos o baixo ritmo de expansão do país em horizontes mais longos. Nas atuais circunstâncias, a dificuldade vem da perda de dinamismo da demanda, principalmente no que se refere ao investimento.

Neste contexto, o desempenho das exportações líquidas adquire mais importância do que o usual, em particular no caso das vendas ao vizinho. Nem tanto pelo seu volume em si, que, embora representasse respeitáveis 8% das nossas exportações totais há um ano, não teria normalmente tração sobre a economia como um todo.

Ocorre, porém, que as exportações para a Argentina são um animal muito distinto da nossa exportação média. Se pensarmos no total vendido ao exterior somos, é claro, um grande exportador de commodities, como soja, minério, carne, aço, papel e celulose e outros produtos semelhantes (notando que o rótulo “manufaturados” se aplica a várias das commodities exportadas pelo país).

Já no caso das vendas para a Argentina, tipicamente mais de 90% do valor se refere a manufaturas e, dentro das manufaturas, aos produtos mais elaborados, notadamente automóveis e autopeças. Em particular, a Argentina representava, há pouco mais de um ano, o destino de 20% das exportações de produtos manufaturados nacionais (hoje sua participação caiu para 12%). Seu valor em 12 meses caiu de US$ 17 bilhões em meados do ano passado para menos de US$ 10 bilhões um ano depois, redução de 40%.

O valor adicionado pela produção local da indústria de transformação nos 12 meses terminados em junho do ano passado era US$ 204 bilhões. A queda das exportações para a Argentina equivaleu, portanto, numa primeira aproximação, a pouco mais de 3% do PIB do setor, valor nada trivial para um segmento que declina desde 2013.

Não aconteceu por acaso, portanto, o descasamento entre as vendas no varejo (grosso modo, o consumo de bens) e a produção industrial. De fato, depois de seguir (a alguma distância) o desempenho do varejo do final de 2016 ao começo de 2018, a indústria de transformação perdeu dinamismo de forma dramática: até o primeiro trimestre de 2018 crescia a uma velocidade média pouco superior a 5% na comparação com o fundo do poço, em outubro de 2016; de lá para cá registra queda de 1%, sempre em termos dessazonalizados; já as vendas no varejo cresciam a 7,5% ao ano entre outubro de 2016 e março de 2018 e, de lá para cá ainda aumentaram 4,2%.

Parte disto resultou da greve dos caminhoneiros em maio do ano passado, mas tudo indica que este efeito já se dissipou. Muito do mau desempenho do setor nos últimos 3-4 trimestres parece provir precisamente da queda das exportações para a Argentina.

Em retrospecto, talvez o Mercosul tenha sido a aposta errada, pelo menos da forma como se deu a relativamente forte integração intrabloco em comparação com sua baixa inserção nas cadeias globais. Todavia, a aposta foi feita e vivemos hoje suas consequências. Não é possível ignorar o efeito da recessão argentina, e a consequente retração das suas importações, sobre a indústria brasileira, em especial o segmento automotivo, cujo volume exportado em 12 meses caiu de quase 800 mil veículos em abril de 2018 para menos de 480 mil em julho de 2019.

Respondendo ao ministro, desde quando o Brasil depende da Argentina para crescer? Desde os anos 90, pelo menos, e teremos que fazer muita força para escapar desta peculiar dependência num prazo minimamente razoável.

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* ALEXANDRE SCHWARTSMAN DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS

@alexschwartsman
aschwartsman@gmail.com

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