Alea iacta est? Por Alexandre Schwartsman

ALEA IACTA EST?

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

 Muito embora a resposta fiscal à crise seja essencialmente correta, suas consequências para o retorno a algum equilíbrio fiscal à frente requerem esforço de correção de rumos ainda maior do que imaginávamos há pouco. A lógica do conflito que guia hoje a relação entre os poderes não nos permite antever uma solução para esse problema…

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA INFOMONEY, EDIÇÃO DE 15 DE ABRIL DE 2020

Nos meus momentos fatalistas me pergunto se nossa sorte já foi lançada. Tenho certeza que não estávamos a um milímetro do Paraíso no começo do ano, mesmo porque o cenário de reformas permanecia, no mínimo, nublado, mas, ao mesmo tempo, tudo convergia para um desempenho econômico mais sólido, que, com um tanto de sorte e outro ainda maior de trabalho, poderia redundar numa trajetória de reequilíbrio fiscal e expansão mais rápida num futuro não tão distante. Jamais saberemos.

A crise sanitária e suas decorrências econômicas, porém, podem ter fechado esse caminho. Como escrevi na semana passada, muito embora as medidas adotadas apontem para a direção correta (a magnitude deverá ser calibrada à luz de nova informação), suas implicações pela ótica fiscal são consideráveis. A dívida do governo, que fechou o ano passado na casa de 76% do PIB e se esperava subir modestamente para 78% do PIB no final de 2020, pode atingir cerca de 90% do PIB nesse horizonte, talvez até mais a depender do que sair dos escombros do Plano Mansueto.

Ao mesmo tempo as chances de avançarmos com temas como a PEC emergencial, a PEC do pacto federativo, a reforma administrativa e a reforma tributária caíram consideravelmente. Em parte porque as energias do Congresso e da parcela pensante do governo estão, justificadamente, focalizadas em problema ainda mais urgente, mas também porque, ao invés de aproveitar a crise para unir o país, o presidente dobrou a aposta no conflito.

Há paralelos desconfortáveis com a situação vivida por Dilma Rousseff no começo de seu segundo mandato, seja no que se refere à incompetência pessoal, seja pela dificuldade de relacionamento com o Congresso.

Mantenho a crença que a intensidade inédita da recessão vivida a partir de 2015 (embora tenha se iniciado ainda em 2014) pode ser atribuída em grande medida à percepção generalizada que a administração não teria, como não teve, condições de avançar na agenda que revertesse o desastre gerado pela Nova Matriz, tanto no campo fiscal, como por conta de suas intervenções avassaladoras no domínio econômico (a devastação no setor elétrico, a ruína da Petrobras, o desperdício de recursos no fomento a campeões nacionais, para ficar apenas nos tópicos mais visíveis).

Tenho hoje visão semelhante. Se, de fato, a dívida chegar a patamares próximos ao mencionado acima, não é difícil concluir que o esforço fiscal para conter o endividamento deverá se materializar na forma de um superávit primário na casa de 1% do PIB em termos permanentes, possivelmente até mais.

Mesmo que consigamos retornar, em 2021 e 2022, aos níveis que atingimos, com sacrifícios, no ano passado (um déficit primário recorrente próximo a 2%, como mostrado na tabela abaixo), o que não está de forma alguma garantido, ainda precisaríamos cobrir uma distância equivalente a 3% do PIB, algo como R$ 220 bilhões em dinheiro de hoje.

 Resultado do governo geral – % PIB (anos selecionados)

  2010 2014 2015 2016 2019
Receita 39,0 38,5 40,4 41,2 42,4
Despesa 40,6 43,4 49,1 48,8 48,2
Remuneração de empregados 11,9 12,3 12,9 13,0 13,3
Uso de bens e serviços 5,4 5,3 5,1 5,3 5,3
Consumo de capital fixo 1,3 1,4 1,5 1,5 1,6
Juros 7,0 7,5 11,9 10,0 7,3
Subsídios 0,2 0,5 0,4 0,5 0,2
Transferências / Doações 0,0 0,1 0,0 0,1 0,0
Benefícios sociais 13,7 14,8 15,6 16,9 18,4
Outras despesas 1,1 1,5 1,6 1,7 2,0
Investimento líquido em ativos não financeiros 1,4 0,9 0,1 (0,1) (0,4)
Superávit (+)/Déficit (-) (3,0) (5,8) (8,8) (7,5) (5,5)
Superávit (+)/Déficit (-) primário 2,1 (0,4) (0,4) (1,5) (0,5)
Superávit (+)/Déficit (-) primário recorrente 0,9 (1,5) (1,7) (3,9) (2,0)

Fonte: STN (estimativa do resultado recorrente do autor)

Trabalho recente da Instituição Fiscal Independente (IFI), uma referência no tema, ilustra o problema. Em novembro do ano passado, o cenário-base da IFI projetava estabilização da dívida entre 80-81% por volta de 2022-2014; à luz, porém, dos desenvolvimentos recentes, a dívida seguiria crescendo mais rapidamente que o PIB pelo menos até 2030, quando atingiria 100% do PIB, não tanto pelo nível em si, mas pela persistente elevação do endividamento num horizonte de 10 anos.

Não é necessário tomar tais projeções ao pé da letra, nem é, acredito, o cerne da mensagem, mas sim que o cenário se tornou imensamente mais desafiador do que esperávamos há pouco.

Nesse sentido, o crucial é sabermos se nossas instituições políticas se encontram à altura do desafio. Hoje, estou convicto que não: a lógica de conflito dificulta demais a construção de maiorias sólidas em matérias complexas como as reformas fiscais, em contraste com o quase consenso agora existente quanto às mudanças constitucionais para enfrentar a crise sanitário-econômica.

Se meu entendimento estiver correto, já cruzamos o Rubicão da sustentabilidade fiscal.

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* ALEXANDRE SCHWARTSMANDOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS

@alexschwartsman
aschwartsman@gmail.com

 

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