casamento para todos

Casamento para todos. Por José Horta Manzano

casamento para todos

Ehe für alle

Mariage pour tous

Matrimonio per tutti

Na Suíça, uma nova lei não costuma ser feita da noite para o dia. Tirando em casos de emergência, como com a pandemia, quando a situação exige criação imediata de regras, as artes legislativas suíças caminham lentamente, a passo de tartaruga. Não se veem leis serem votadas a toque de caixa, como é comum no Brasil, país onde se dorme com uma regra e se acorda com outra.

Cerca de quinze anos atrás, foi dado estatuto legal à união entre duas pessoas do mesmo sexo. Não era ainda um verdadeiro casamento, mas já foi um passo ousado, vista a mentalidade da época. A lei, votada em 2004 e referendada por plebiscito de 2005, instituiu novo estado civil além dos tradicionais (solteiro, casado, viúvo e divorciado). A partir de então, os que assinavam esse contrato de união deixavam de ser solteiros, mas também não se tornavam casados; estavam “vinculados por uma união civil” – nome que variava conforme a língua oficial da região.

A “união civil” era, por assim dizer, um casamento capenga. Primeira grande diferença: dado que era reservado aos casais de mesmo sexo, era um denunciador da orientação sexual do cidadão, criando situações constrangedoras – no emprego, por exemplo. Em segundo lugar, o casal unido por esse pacto estava proibido de adotar filhos. Havia ainda algumas diferenças notáveis. Em resumo, já era um avanço, mas ainda insuficiente para os tempos atuais.

Desde a época em que a “união civil” entrou em vigor, associações militantes e grupos de parlamentares de cabeça mais aberta vêm batalhando para instituir um verdadeiro casamento igual para todos, quer os contraentes tenham o mesmo sexo, quer não. A luta foi longa, como são todas as que mexem com estruturas sociais cristalizadas. Finalmente, em dezembro de 2020, as duas câmaras do Parlamento aprovaram nova lei instituindo o casamento para todos.

Desta vez, sim: os direitos são iguais para todos. Casais de mesmo sexo são tratados como casais heterossexuais em caso de sucessão (herança), uso do nome de família, estado civil (todos têm o direito de se dizer “casados”, sem distinção de orientação sexual), direito à naturalização facilitada para o cônjuge estrangeiro de um cidadão suíço. Todos têm direito a adotar, independentemente do sexo dos cônjuges – o que era proibido antes. As mulheres têm direito à procriação medicamente assistida, ou seja, toda criança nascida de uma delas terá oficialmente duas mães, escapando à menção infamante “pai desconhecido”.

Só que, sacumé, sempre tem os desmancha-prazeres. Um grupo de ultraconservadores não apreciou o novo dispositivo legal. Lançou uma petição, coletou o número de assinaturas necessário e forçou a lei a ir a julgamento. Na Suíça, em casos assim, quem julga não é o Tribunal Federal, mas o povo. Seguindo o protocolo, o governo organizou um referendo popular em que a pergunta era: “Aceita a Lei n° tal, assim assim?”. A resposta só podia ser sim ou não.

O voto foi anteontem, domingo, 26 de setembro. A lei dita de “casamento para todos” foi aprovada, sob aplausos, por uma forte maioria de dois em três suíços. A participação no plebiscito foi até um pouco superior à média. Agora, sim, o novo dispositivo será inscrito na Constituição Suíça. A meu ver, um sistema de escolha sólido como esse vale mais que o simples voto de parlamentares. Tem legitimidade maior.

A Suíça até que estava atrasada nessa corrida ao “casamento para todos”. Já em 1989, a Dinamarca tinha aberto o caminho, ao autorizar as primeiras uniões civis para casais homossexuais – uma extravagância à época. Mas foram os Países Baixos (Holanda), em 2001, os primeiros a darem base legal a um casamento homossexual de verdade.

De lá pra cá, só na Europa, mais 15 países seguiram esse caminho: Bélgica, Espanha, Portugal, Islândia, Noruega, Suécia, Dinamarca, França, Irlanda, Finlândia, Alemanha, Luxemburgo, Malta, Áustria e Reino Unido. A partir de agora, a Suíça é o 17° a entrar para o clube. Na prática, os primeiros casamentos gays poderão ser celebrados a partir de 1° julho de 2022.

Outros países europeus, embora não tenham (ainda) o casamento para todos, têm algum estatuto de união civil para casais de mesmo sexo: Chipre, Itália, Croácia, Hungria, Grécia, Eslovênia, Estônia e Tchéquia.

Na América Latina, a Argentina foi o primeiro país a autorizar casamentos homossexuais. O Brasil, a Colômbia, a Costa Rica, o Equador e o Uruguai também autorizam. No México e nos EUA, é mais complicado; a legislação pode variar de um estado a outro. Em Cuba, estão quase chegando lá, mas ainda falta amansar a Igreja, que, ao que parece, tem força por lá. Na Ásia, Taiwan é o pioneiro e, por enquanto, único país a reconhecer o casamento para todos.

Israel vive uma situação um tanto esquizofrênica. Não pode haver matrimônio gay no país; no entanto, se ele tiver sido contraído no estrangeiro, será reconhecido. Nova Zelândia e Austrália já deram o passo.

A África e a Ásia ainda estão bem atrasadas nessa corrida. Tirando a honrosa exceção da África do Sul, o resto é dramático. Em muitos países, toda homossexualidade é reprimida, que dirá o casamento gay. Em países como Irã, Afeganistão, Sudão, Somália, Nigéria, Arábia Saudita, Paquistão, Catar, Emirados – e em diversos outros – toda relação gay é crime que pode levar à cadeia ou, dependendo do humor do tribunal, até à pena de morte.

Como se vê, tem horas em que a gente quase acredita que o brasileiro, apesar da escuridão bolsonariana, ainda não deixou de ser um povo cordial.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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